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Violência e criminalidade: Perda do “fio da meada” — Parte 5

Inegável, inconteste é que no Brasil, no Estado do Espírito Santo, por décadas, muitos, inúmeros, milhares de “fios das meadas” ficaram perdidos, desprendidos do grande tear

Coluna — Café Coado, com José Nivaldo Campos Vieira

Na intenção de compreender o fenômeno violência e criminalidade que assola nosso País e, no contexto deste, de maneira significativa, o Estado do Espírito Santo, estamos empreendendo caminhada, na tentativa de encontrar elementos que evidenciem a causa que leva, de maneira agressiva, um número cada vez maior de pessoas, cada vez mais jovens, ingressarem no mundo do crime.
Entendo, e respeito, que alguns possam não gostar do trato do tema pela ótica que aqui percorro, principalmente em função dos efeitos que as ações criminosas, nos delitos de toda ordem, em especial os contra a vida, impactam a sociedade como um todo. Compreensível o desagrado em relação à abordagem que faço, principalmente em relação às pessoas diretamente atingidas, com as perdas de vidas humanas inocentes, por ação de criminosos, que levam precocemente deste mundo, de forma torpe, pais de família, filhos amados, vizinhos, amigos, companheiros de trabalho e assim por diante.
A violência desmedida faz, inclusive, que se relativize dramaticamente as perdas em relação aos bens materiais, ao patrimônio, muitas vezes conseguido a partir de árduo esforço de trabalho. Quando uma pessoa é “assaltada” (é vítima de um crime de roubo), quando se vê dela retirada, de forma abrupta, o seu “smartphone”, adquirido como já dito, muitas vezes com dificuldade, financiado, ainda com muitas prestações a serem pagas, é comum se ouvir o comentário: “graças a Deus ele (o assaltante) não fez nada comigo”. Dramático. Lamentável.

Marilena Chauí no ensaio “Ética e violência” diz que violentar é “desnaturar, coagir, constranger, torturar, brutalizar, transgredir”. Neste sentido, ela define violência, de maneira determinada, como sendo: “brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror”.
A criminalidade disseminada em nosso País, em nosso Estado, cada vez mais violenta, desestabiliza, provoca comoção, desespero, raiva, ódio, sede de vingança, ou, na melhor e mais branda das hipóteses, esperança e sede de justiça.
Como no mundo dos homens a justiça almejada costuma não vir, ou quando vem, não se apresenta, à luz do ofendido, na medida desejada ou no tempo certo por ele vislumbrado, em momentos de amargura e de desespero, evoca-se, por vezes, a “justiça divina” como esperança última. E aqui, mais uma vez a coisa fica confusa. Como Deus, na sua infinita bondade, sempre perdoa, haverá sempre a possibilidade de, na concepção do agredido, a aplicação de pena inadequada.

Colocando de novo os pés no chão, existem, e não são poucas, organizações sociais, assistenciais, religiosas, etc., que se encarregam de cuidar do agressor, tendo, com certeza, como objetivo último de ajudá-los a expiar o pecado decorrente dos crimes por eles praticados. Profundo e complicado. Quem sabe, reconhecer a existência do passivo social, do descuido, da falta de atenção, do abandono, do comportamento “não é comigo” em relação aos milhares de “fios das meadas” que, desprendidos do gigante tear, vivem à margem da sociedade, possa ser uma pista para o controle da violência e da criminalidade. Quem sabe.
Neste sentido, é possível que as organizações sociais mencionadas (aqui, com ênfase, as efetivamente envolvidas e comprometidas em relação aos objetivos para os quais foram constituídas), que dão assistência aos “fios das meadas” desprendidos, tecido social defeituoso, estejam trilhando o caminho certo, embora sejam muitas vezes incompreendidas.
Com seu trabalho, além de colaborar com a perspectiva da Conquista do “perdão divino”, proporcionando aos perdoados um lugar melhor no paraíso celestial, estejam ao mesmo tempo contribuindo para a melhora do mundo deles (e do nosso) aqui na terra. Merece ser pensado.

Inegável, inconteste é que no Brasil, no Estado do Espírito Santo, por décadas, muitos, inúmeros, milhares de “fios das meadas” ficaram perdidos, desprendidos do grande tear. A forma como se organiza a sociedade brasileira, a sociedade capixaba, decorreu da opção que tomamos lá atrás.
Como podemos hoje querer um tecido social de boa qualidade, bem-estruturado, se há muito tempo, anos após anos, ignoramos os “fios das meadas” desconectados do potente e arrojado tear que os produziam. Enfim, fabricamos, como já disse de forma reiterada em artigos anteriores, tecidos sociais defeituosos. Vamos corrigir o processo.
No capítulo anterior nos detivemos nos anos 60, década marcante para a geopolítica do planeta, de nosso País, e, de forma determinante, para Estado do Espírito Santo. No auge da guerra fria, as duas superpotências mundiais (URSS e EUA) travaram batalhas surdas e absurdas, que chegaram a levar, na mídia e na sociedade, em geral, a discussões loucas do tipo: quem tinha mais ogivas nucleares, ou ainda, “quantas vezes o arsenal nuclear de cada uma delas tinha capacidade para destruir o planeta Terra”.

Palafitas de São Pedro, Vitória (Foto: Arquivo Público de Vitória)

Passados alguns anos com alguma trégua, vemos emergir novamente nos primeiros meses de 2022, mais uma vez, preocupações em relação ao emprego de ogivas nucleares, decorrente da situação do conflito Rússia contra Ucrânia. Ainda com fins estritamente militares, as duas superpotências iniciam uma maluca corrida espacial que culmina, em 12 de abril de 1961, com a primeira viagem especial de um ser humano. Nela, o astronauta russo Yuri Gagarin deu uma volta em torno da terra. Oito anos depois, mais precisamente em 20 de julho de 1969, os EUA dão o “troco”. Levando três astronautas a bordo, a espaçonave Apollo XI pousa na lua.
Também, na famosa década de 60, e ainda em decorrência da Guerra Fria, são dados passos importantíssimos para o encurtamento das distâncias no planeta. Surge a rede mundial de comunicação, ou simplesmente a internet, que como uma “teia de aranha mundial”, conhecida pela famosa repetição de letras “www”, revolucionou o modo de ser e os costumes dos habitantes do planeta terra. Vivemos o auge da “realidade virtual”.

Aqui, nas terras descobertas por Cabral, em 21 de abril de 1960, exatamente a zero hora do dia que o Brasil completava 460 anos da chegada dos portugueses, a Capital trocou de endereço. Foi para a então futurística Brasília, no planalto central brasileiro, cuja construção se deu em tempo recorde (menos de quatro anos) e com um custo também recorde, motivado por diversos fatores (logístico, operacional e de gestão). Gastou-se na construção de Brasília algo em torno de um bilhão de dólares.
Na sequência de acontecimentos marcantes, ainda na década de 60, no dia 31 de janeiro de 1961, Juscelino Kubitschek de Oliveira, construtor de Brasília e primeiro mandatário a ocupar seus palácios, passa a faixa presidencial ao seu sucessor, o excêntrico Jânio da Silva Quadros, que em 25 de agosto do mesmo ano renuncia ao mandato.

A renúncia de Jânio dá início a um quadro de instabilidade política na história do Brasil, culminando, em 31 de março de 1964, com a deposição do Presidente João Belchior Marques Goulart, eleito vice-presidente na chapa de Jânio e que havia assumiu a Presidência em decorrência da renúncia deste. Os militares assumem o poder.
No borbulhar das transformações, alterações, dos avanços e recuos, dos atinos e desatinos vivenciados no mundo e em nosso País a partir da marcante década de 60, o Estado do Espírito Santo é impactado bruscamente com a mudança de sua matriz econômica, e em decorrência disto, como já disse no artigo anterior, sofre forte impacto social.
Como exemplo deste impacto social, podemos mencionar o surgimento do primeiro grande aglomerado urbano decorrente do êxodo rural em função da decisão do Governo Federal de erradicar cafezais no Espírito Santo. Ele surge nos Municípios de Vila Velha e Cariacica e, sem nenhuma infraestrutura, cresce, se agiganta.

Nele se acomodam, como podem, com total ausência do Estado, milhares de “fios das meadas” desprendidos do poderoso “tear” em decorrência de ter-lhes sido, com a erradicação do café, também “erradicada” a sua fonte de renda e a base de convivência social em suas comunidades.
Não se deu por acaso a formação, o surgimento, dos hoje bairros/comunidades de Cobi (de Bairro e de Cima), Cobilândia, Jardim Marilândia, em Vila Velha; e Jardim América, Bela Aurora, Campo Grande, em Cariacica. Vejamos.
Para cumprir fielmente o seu papel de “fronteira verde”, de forma a proteger as riquezas das minas gerais, as vias de ligação do Espírito Santo para os demais estados brasileiros sempre foram muito “acanhadas”, restritas, e, curiosamente, convergentes, concentradas (facilidade de controle, questão de logística).
Até a década de 60, a Ponte Florentino Avidos (a Cinco Pontes) era a única ligação ferroviária e rodoviária da Capital Vitória com Vila Velha e, por consequência, com a Região Sul. As outras eram aquáticas. Por canoas, e depois também barcas, que ligavam o bairro Paul à Ilha de Vitória, e ainda, por canoas, usando o hoje assoreado Rio Marinho (que faz divisa entre Vila Velha e Cariacica) que, acreditem, já foi navegável.

Também em Vila Velha se concentravam as ligações ferroviárias do Espírito Santo com o Brasil. A Estrada de Ferro Vitória a Minas, da então Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) — hoje Vale, que liga o Espírito Santo a Minas Gerais, tinha a sua estação inicial localizada em Vila Velha (Estação Pedro Nolasco, em Paul, posteriormente transferida para Jardim América, em Cariacica). Também era por Vila Velha que se escoava para o mundo o minério de ferro que chegava ao Espírito Santo pela ferrovia da Vale.
Ainda em Vila Velha (também em Paul), pela Estrada de Ferro Leopoldina, da Rede Ferroviária Federal, se fazia nossa ligação com o Estado do Rio de Janeiro, hoje desativada. Por Vila Velha também passava a malha rodoviária. A BR 262, que faz a ligação com o Brasil central, começava exatamente na divisa entre Vila Velha e Cariacica, assim como a BR 101, que faz a ligação das Regiões Sul/Norte do País, e que até a construção da Rodovia do Contorno (década de 70), também passava por Vila Velha.

Com este desenho, não é difícil de imaginar por onde chegaram, e onde ficaram, parte significativa dos milhares de “fios das meadas” desprendidos do “tear” em decorrência da erradicação do Café. Chegaram, muitos com os filhos e mudança (esta consistindo, por vezes, de algumas malas e alguns poucos pertences, principalmente ferramentas de trabalho). Eram-lhes dadas algumas poucas alternativas de onde ficar.
Para quem tinha algum dinheiro e podia comprar um lote de terra, em Vila Velha, a família Laranja loteou sua propriedade rural (localizada à margem direita da Rodovia Carlos Lindenberg — sentido Vitória a Vila Velha). Assim, foram constituídos os bairros de Cobilândia, depois Jardim Marilândia e assim vai, em áreas que, já naquela época (estamos falando de 1960), inundavam.
Para quem tinha um pouquinho mais de dinheiro, embora não muito, a família Viola loteou também a sua propriedade rural. Em melhores condições de habitabilidade, livre de enchentes, foram constituídos os bairros de Jardim América, depois Campo Grande, e assim por diante.

Vista frontal do Morro em Cobi, Vila Velha-ES (1979) (Foto: Fernando Schwab/IJSN)

Bem, e para quem não tinha dinheiro nenhum? Para quem, desempregado, em lugar estranho, deslocado do seu universo de convívio social, tinha só a família, os filhos (geralmente muitos) para cuidar, o que fazer?
A estes, sobrou uma faixa de terra, com muito mangue, situada às margens direita e esquerda do Rio Marinho, constituída de terreno público.
Aos “fios das meadas” desprendidos do grande “tear” que se encaixavam na categoria dos “sem dinheiro” (e naquele momento, eram os “sem-terra” para fazer o que sabiam, os “sem casa” para morar, os “sem trabalho” para prover o sustento de sua família, os “sem referência de comunidade social”, da qual foram “erradicados”), mas, com dignidade, com valores, e referência de família, restou a inóspita área de mangue.
Nela havia madeira, e eles tinham disposição, tempo, força de trabalho, e algumas ferramentas: construíram suas casas. O mangue e o rio eram ricos em peixes, camarões, caranguejos, goiamuns, e outros crustáceos: Tinham como se alimentar.
Surge em Cobi de Baixo (logo depois, Cobi de Cima, este com outra configuração geográfica), o primeiro grande aglomerado, em forma de favela de palafita, formado pelos “fios das meadas” desprendidos do grande “tear”. É possível referenciar a década de 60 como um marco para a evolução da humanidade. A partir dela, com o advento da tecnologia, da informática, o progresso passou a ser medido não mais em décadas, mas em anos, meses, dias.

Na contramão dos avanços, no Estado do Espírito Santo, milhares de “fios das meadas” foram desprendidos do grande “tear”. No meio rural, tinham identidade: Eram trabalhadores rurais, meeiros ou pequenos produtores rurais. Tinham suas casas, convívio social.
No meio urbano, passaram a ser desempregados. Perderam sua identidade. Passaram para a condição de “favelados”. Para eles faltava tudo, inclusive serviço médico público. Na época, ao trabalhador informal (a maioria), o sem “carteira assinada”, não era permitido o acesso ao serviço de saúde da previdência social.
Os “fios das meadas” abandonados, “erradicados” junto com os pés de café, migraram do meio rural para a cidade, onde chegaram com seus filhos. Os filhos deles tiveram filhos, e estes seus filhos. A violência e a criminalidade de hoje não são frutos de “geração espontânea”. Constituem consequências, e como toda consequência, tem sua causa.
Os criminosos, os “bandidos” de hoje, cada vez mais precoces, fazem parte da terceira geração (alguns, em decorrência da precocidade com que as mulheres engravidam, já fazem parte da quarta geração) de famílias desprotegidas, desassistidas, abandonadas.
Não são violentos, não são agressivos “naturais”. A violência, a agressividade, decorre da somatória de diversos fatores sociais, da ausência de políticas públicas. O déficit, acumulado em cinco décadas, gerou uma patologia preocupante.

Ocupações irregulares dificultaram o desenvolvimento urbano no ES. Santa Rita em Vila Velha-ES, onde se vê as palafitas e o lixão (Foto: Rui de Oliveira/IJSN)

Mas, não se cura a doença “matando” o doente (se fosse assim, o problema da violência no Brasil e no Espírito Santo já teria sido revolvido. Mata-se mais que em muitas guerras). Por outro lado, o remédio que estamos prescrevendo, na relação do sempre MAIS do MESMO (mais polícia, mais repressão, mais prisão, mais…, mais…, mais…), pelo que podemos observar, não vem surtindo efeito.
Continuaremos nossa reflexão no próximo artigo. Nele vamos ingressar na década de 70. Década áurea para o início do desenvolvimento e crescimento econômico do Estado do Espírito Santo (mas não para o desenvolvimento social, que continuou se agravando, deteriorando).
Nos anos 70 vamos ver a criação do Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias (Fundap), a entrada definitiva do Estado na era da industrialização, principalmente em decorrência dos grandes projetos na área da metalurgia, siderurgia e celulose. O problema da violência e da criminalidade no Espírito Santo (como de resto no Brasil), impulsionado fortemente pelo narcotráfico, tem cunho predominantemente social. E precisa ser lidado exatamente por esta ótica. Há cura para a “doença”. Basta atrelar os “fios das meadas” que, por anos seguidos, décadas seguidas, continuam desprendidos do gigante “tear”.
Direitos e deveres. Valores, responsabilidade social. Trabalho. Compromisso e responsabilidade de todos. Educação, saúde, saneamento básico, iluminação pública. Cultura, lazer. Espaços públicos funcionando à noite, acolhendo, proporcionando esporte, recreação.
Quem sabe, quem sabe…

José Nivaldo Campos Vieira
Advogado, formado em Filosofia,
coronel da Reserva da PMES e
empresário da área de segurança privada
nivaldo@seiinteligencia.com.br

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