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A vida imitando a arte numa sessão de café bem amarga

Dias atrás escrevi aqui sobre a série da Netflix chamada Machos Alfa. Falamos como a comédia aborda questões importantes a respeito dos dilemas atuais vividos por homens e mulheres, principalmente relacionados à masculinidade tóxica. De lá para cá algumas notícias ganharam espaço para debate no Brasil e no Espírito Santo. Confesso que fico estarrecida com algumas posturas.
Primeiro, foi o crescimento de um movimento denominado ‘Machosfera’ propagado por um suposto Coach que tem usado as redes para pregar a superioridade masculina. Esse movimento acabou virando caso de polícia, depois das ameaças sofridas por uma atriz que resolveu denunciar a ação.

O caso é sério e não pode ser minimizado. Muitas pessoas correm desesperadamente atrás de likes às custas da desinformação e sem responsabilidade social. Não estou aqui para desqualificar os criadores de conteúdos digitais ou influencers. Cada profissional tem seu espaço e deve ser respeitado. Mas nossa vivência social no mundo real ou digital não pode virar uma terra sem lei, um espaço onde tudo se pode realizar sem consequência. Esclareço desde já que sou radicalmente favorável à liberdade de expressão e não aceito censura prévia dos poderes constituídos. Mas cada ação nossa tem uma consequência e deve ser analisada em seu caso concreto para que possa produzir os seus efeitos legais.

Vamos voltar à discussão da comédia seriada em exibição na Netflix, onde a personagem Pedro se encontra em um momento de fracasso profissional e pessoal. Pedro se vê diante da incapacidade de realizar reflexões sobre a sua conduta no mundo. Frustrado, e diante da dificuldade de avaliar sua própria responsabilidade nas consequências de suas ações, Pedro se mostra uma personagem invejosa do sucesso que as mulheres vêm ganhando no seu nicho.

Ao invés de entender o cenário ele prefere assumir uma atitude de atacar aquelas que ele escolheu como inimigas, as mulheres, criando um curso voltado para a defesa do macho alfa. Bom, já tivemos a oportunidade de discorrer sobre esse assunto. O macho alfa saudável não precisa atacar nem se defender. O verdadeiro macho alfa não precisa disputar espaço. Ele é consciente de suas conquistas e trabalha num ambiente colaborativo, muito diferente de quem vive uma masculinidade tóxica. Mas Pedro não estava preocupado com a posição do macho no mundo. Ele estava mesmo era desesperado por conseguir likes, pois nitidamente travava uma competição motivada pela inveja do sucesso de sua noiva alcançava nas redes sociais. Não tinha nada de altruísta em sua decisão. Ele não estava preocupado com a sobrevivência ou com a saúde dos machos na sociedade. Ele se aproveitava da fragilidade de quem vive os desafios dos relacionamentos para tirar um proveito tóxico.

Mas a verdade é que, algumas vezes, a arte imita a vida. Outras vezes, a vida imita a arte. Assim, o disseminador da machosfera no Brasil tem usado suas redes para distribuir conteúdos ofensivos à existência feminina, desqualificando a mulher, colocando-a como ser inferior, bem parecido com que o seriado Machos Alfa nos apresenta.

Segundo o artigo 5º, inciso IX da Constituição Federal: IX — “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Ocorre que o caput deste artigo, que subordina e orienta todos os seus incisos, diz que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança”. E aqui quero destacar a igualdade como valor, pois a Constituição de 1988 é um marco contra a discriminação no País.

Não há superioridade de raça, cor, orientação ou sexo. Nossa Constituição no artigo 3º, inciso XLI, menciona que “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Então, o primeiro olhar que devemos ter para esse movimento denominado machosfera é que ele ofende a lei maior do País em pelo menos dois momentos: no artigo 3º e no artigo 5º. E se o Congresso for ágil e corajoso, logo teremos definido também em lei penal o crime de misoginia. Aliás, misoginia é uma palavra de origem grega que significa ódio às mulheres.

Mas o que mais nos impressiona é saber que nosso Estado tem graves problemas em todas as áreas: saúde, educação, infraestrutura, saneamento básico e segurança. Não temos médicos suficientes na saúde pública, faltam vagas em creches, nossos jovens estão fora da escola, nossa água — que deveria ser potável — está barrenta e um surto de diarreia assola a população. Mas tem deputado preocupado em fazer lei para proibir cursos para que os homens possam ter a oportunidade de discutir as relações de gênero, os afetos e o papel do homem na construção de uma sociedade mais segura para eles e para elas. Parece-nos que está faltando tempo para fiscalizar o Poder Executivo nas necessidades mais básicas da população.

Enquanto isso, no Brasil, no ano de 2022, 1,4 mil mulheres foram vítimas de feminicídio. Esse número é ainda maior, pois os dados relativos aos feminicídios tentados são inexistentes. É bem provável que se a luta legislativa fosse para revelar esses número, teríamos políticas mais assertivas de proteção à mulher e também à família.

Quem sabe assim nós poderíamos colaborar no fortalecimento de relações mais saudáveis e que promovessem a felicidade para homens e mulheres. Enquanto assisto estarrecida a um cenário de descompromisso social, fico por aqui com nosso Café Coado.

Você pode colaborar com a coluna enviando e-mail para @colunacafecoado@gmail.com

Gracimeri Gaviorno

Gracimeri Gaviorno

Delegada de polícia; mestre e doutora em direitos fundamentais; professora; Instrutora e mentora profissional para lideranças E-mail: colunacafecoado@gmail.com

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