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Feminicídio Zero!

O plantio é trabalho coletivo, envolve os governos, as casas legislativas, o sistema de polícia e de justiça, a sociedade organizada, os empresários, os conselhos de direitos, as lideranças comunitárias e associativas, os cidadãos

Não, não é um sonho. Uma das cidades mais violentas do Espírito Santo recebeu com alegria a notícia de que no ano de 2022 não foi registrado nenhum feminicídio. Esse resultado que, sem sombra de dúvidas, deve ser comemorado, é fruto de um trabalho preventivo. Isso mesmo. Claro que ações criminosas devem receber o rigor da lei. Agressores devem responder por seus crimes. As vítimas precisam ser amparadas em sua integridade física, moral, psicológica e emocional. Políticas públicas que promovam autonomia financeira e proteção laboral devem ser implantadas e aprimoradas. Mas não há nada mais eficaz do que a educação ou reeducação para este novo mundo que vivemos, um mundo que não quer ver as mulheres violadas em seus diversos direitos.

Como trazer os homens para a necessária discussão sobre o enfrentamento à violência contra a mulher? Como fazê-los entender que não se trata de guerra do sexos, mas de uma luta que deve envolver a todos. Uma luta que não traz a vitória para um gênero específico, mas para toda a sociedade.

Essa foi a proposta do Projeto Empenhados pela Paz que, tive a oportunidade de idealizar e implantar quando estive como secretária de Políticas Públicas para as Mulheres no Município da Serra. É preciso ter coragem e, ao mesmo tempo, humildade para enfrentar os problemas sociais. É preciso buscar parcerias em quaisquer lugares que elas se encontrarem. Até nos mais inusitados.

A inspiração veio de uma iniciativa que conheci quando era titular da Delegacia da Mulher no Município da Serra, em 2002. Naquela época, a Juíza Hermínia Azoury estava atuando no Município, que já apresentava altos índices de violência contra a mulher. Ainda não havia Vara Especializada e nem instrumentos idôneos para enfrentar o que a ONU declarou ser violação dos direitos humanos das mulheres. Ainda que se conseguisse afastar os agressores do lar e, de certa forma, proteger as mulheres vítimas de violência, os agressores encontravam uma nova companheira, uma nova vítima para torturar com seus dilemas e frustações. A violência não cessava. O que tínhamos então, era apenas uma troca de vítima. Por isso, naquela época, a juíza Hermínia teve a inciativa de encaminhar os agressores a um projeto-piloto de acompanhamento psicossocial a fim de que eles pudessem repensar sobre suas práticas abusivas.

Fui recuperar essa proposta em 2015 quando estive à frente do Comando da Chefia da Polícia Civil. Até então, todos nós conhecíamos alguns avanços em relação às políticas de enfretamento à Violência contra a Mulher, mas os números no Brasil, e no Estado, mostravam que ainda havia muito a ser feito. Neste mesmo ano, uma publicação específica do Mapa da Violência contra a Mulher trouxe a análise de dados coletados referente ao período de 2003 a 2013. Esses dados mostravam um crescimento da taxa de homicídios de mulheres no Brasil. Devemos lembrar que, ainda não havia sido criada a lei que criou a figura jurídica do feminicídio e, portanto, o Brasil ainda não contabilizava as mortes de mulheres relacionadas às violências de gênero.

Verificou-se que, na década em estudo, o número de vítimas do sexo feminino passou de 3.937 em 2003 para 4.762 em 2013. Ao final da série histórica, nosso País ocupava o 5º lugar no ranking mundial de violência contra as Mulheres.
Em 2003, o Espírito Santo liderava o ranking de homicídios de Mulheres com uma taxa de 8,6 homicídios de mulheres/100 mil, praticamente o dobro da taxa Brasil que era de 4,4 por 100 mil. Em 2013 nosso Estado deixava o primeiro para ocupar o segundo lugar com uma taxa de 9,3 por 100 mil, atrás de Roraima, cuja taxa era de 15,3. A taxa Brasil neste período foi de 4,8. E o município da Serra aparecia em 14º lugar entre os municípios com mais de 100 mil habitantes com maiores índices de homicídios de mulheres.

Diante desse triste cenário, como mulher, e ocupando um lugar tão importante entre as carreiras de enfrentamento à violência de gênero, eu não poderia seguir indiferente. Políticas de enfrentamento à violência e acolhimento às vítimas deveriam ser fortalecidas. A lei que criou o crime de feminicídio foi muito bem-vinda. Precisávamos começar a contabilizar as vítimas fatais da violência contra a mulher. Mas precisávamos avançar mais. Nosso desejo não era contar cadáveres, mas evitar as mortes. Por isso, o importante destaque que demos à prevenção quando assumimos a Chefia da Polícia Civil. Essa era a diretriz do então governador Paulo Hartung, que sempre investiu em políticas sociais de prevenção. Era o que queria a nossa Sociedade Capixaba, que andava muito assustada com o número crescente da violência de gênero.

Foi assim que, em 6 de janeiro de 2015, lançamos, na Polícia Civil, o Programa Homem que é Homem, voltado para os homens agressores. O grupo reflexivo era composto de cinco encontros liderados por delegadas, assistentes sociais e psicólogos. O programa que teve seu início na Grande Vitória e se estendeu para todo o Estado, tem a finalidade de criar condições para que os homens possam conhecer as diferenças e entender as relações entre gêneros; identificar condutas abusivas e criminosas; compreender o sentido da autorresponsabilidade na construção de uma sociedade de paz e desenvolver formas não violentas de resolução de conflitos. A iniciativa integrou o rol de ações de enfrentamento à violência contra a Mulher que levou o Brasil a receber, em 2016, o Prêmio Governarte do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

E foi apostando na prevenção que o Espírito Santo teve taxa de 6,8, com 133 mortes violentas do sexo feminino em 2015 e 5,3, com 106 mortes no ano de 2016, um grande avanço, tendo em vista que em 2013 nossa taxa era 9,3. Em relação aos feminicídios consumados, passamos de 58 registros em 2015 para 34 em 2016. Isso demonstra que as políticas de prevenção são sempre mais eficazes.

Por isso, vemos com alegria o resultado do trabalho preventivo realizado com a implantação do Projeto Empenhados pela Paz, que buscou a parceria dos homens para o enfrentamento à violência contra a mulher. Nosso trabalho inicial foi junto com os barbeiros, que receberam capacitação para compreender o problema e ajudar outros homens a superarem os desafios enfrentados nas relações de gênero. Em um município com um importante parque industrial, comercial e de serviços, foi fundamental a participação das indústrias e empresas, promovendo momentos de reflexão junto a seus colaboradores. É plantando que se colhe. O plantio é trabalho coletivo, envolve os governos, as casas legislativas, o sistema de polícia e de justiça, a sociedade organizada, os empresários, os conselhos de direitos, as lideranças comunitárias e associativas, os cidadãos. E nessa seara não importa quem colhe, porque toda a sociedade sai beneficiada. Os frutos são para todos.

Não podemos deixar de registrar que necessitamos avançar ainda mais. No Brasil, infelizmente, só contamos os feminicídios consumados. Ainda carecemos de saber quantos feminicídios tentados acontecem entre nós. Isso colabora para o estabelecimento de políticas públicas.

A Lei Maria da Penha, datada de 2006, representou um marco no enfrentamento à violência contra as mulheres em nosso País. Em 2015, a Lei do feminicídio permitiu que avançássemos um pouco mais. No entanto, até hoje não sabemos quantas Marias da Penha existem o Brasil. E na Serra? Ainda não sabemos quantas Marcianes ainda carecem de proteção.

Que o Café Coado desta semana nos leve à reflexão da importância do envolvimento de todos, sem exceção, e da necessidade de darmos as mãos para enfrentar essa tragédia humana que é a violência contra a mulher!

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Gracimeri Gaviorno

Gracimeri Gaviorno

Delegada de polícia; mestre e doutora em direitos fundamentais; professora; Instrutora e mentora profissional para lideranças E-mail: colunacafecoado@gmail.com

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