Incêndios, Júlio César e árabes: o que aconteceu com a Biblioteca de Alexandria?

A Biblioteca de Alexandria foi um dos repositórios mais significativos da Antiguidade, mas teve sua coleção devastada ao longo de séculos
Por Éric Moreira
Existem várias maneiras diferentes de se estudar e se aprofundar em história, desde a Arqueologia até a pesquisa aprofundada em bibliotecas e documentos antigos, de vários lugares do mundo. Mas mesmo após milênios, ainda hoje os pesquisadores lamentam o que foi, possivelmente, uma das perdas mais valiosas da história e cultura do Mundo Antigo: a Biblioteca de Alexandria.
Fundada na cidade de Alexandria, no Egito, no século 3 a.C., a biblioteca foi um centro cultural e de pesquisa que abrigou um vasto acervo de conhecimento, e atraiu estudiosos de todo o mundo durante a Antiguidade. No entanto, ela sofreu vários ataques ao longo de sua história, que culminou no desaparecimento quase total de seu acervo.
Uma das histórias mais conhecidas sobre a destruição da Biblioteca de Alexandria se refere ao imperador romano Júlio César, que teria ordenado que ela fosse incendiada. Mas os eventos que ocorreram em Alexandria foram ainda mais conturbados que isso, e ela passou por um processo de apagamento gradual ao longo de muito tempo.
Fundação da biblioteca
Conforme repercute o National Geographic, embora tenha sido fundada no Egito, a Biblioteca de Alexandria era, acima de tudo, um verdadeiro bastião da antiga cultura grega. Ela foi construída dentro do templo Mouseion — ou Templo das Musas —, e contava com o museu, salas de leitura e jardins. Relatos da época não poupam elogios à arquitetura do local, para além do acervo; todos aspectos que homenageavam a civilização grega, que influenciou significativamente o reinado de três séculos da dinastia ptolomaica no Egito.
Não está perfeitamente claro até hoje se o idealizador da biblioteca foi o primeiro faraó da dinastia ptolomaica, Ptolomeu I Sóter — de origem macedônia —, que ascendeu ao trono em 323 a.C., ou seu conselheiro, Demétrio de Falero. Mas é inegável que o fato de Ptolomeu ter transformado o Egito em uma espécie de “meca” da cultura grega foi fundamental para o estabelecimento da biblioteca.
Em específico, Ptolomeu tinha grandes ambições para Alexandria. Ele não só ajudou a construir a cidade na costa mediterrânea do Egito, como também a transformou em capital em 305 a.C. Com isso, ela serviu como um porto de entrada para o comércio e para a cultura grega, recebendo diretamente literatura, arte e filosofia de outras regiões.
Em 295 a.C., Ptolomeu deu a Demétrio a responsabilidade de construir a maior coleção de obras escritas do mundo, o que tornou Alexandria um importante centro cultural grego. Infelizmente, o rei não pôde ver a biblioteca concluída, morrendo em 283 a.C.; a inauguração só se deu durante o reinado de seu filho, Ptolomeu II Filadelfo, entre 284 e 246 a.C.
Nesse momento, vale mencionar, a dinastia ptolomaica já estava bem consolidada, tendo investido recursos exorbitantes no projeto e na expansão da cidade. Batedores do faraó viajavam por todo o mundo em busca de obras escritas, que adquiriram ou copiavam de outros grandes tesouros, como a biblioteca de Aristóteles e cópias de peças originais de Ésquilo, Eurípides e Sófocles.

Mas, para além de obras gregas, a Biblioteca de Alexandria também continha em seu acervo obras de outros grandes centros culturais, como a Síria, a Pérsia e até a Índia. Com um acervo proveniente de tantos lugares do mundo, ela impressionava qualquer visitante com suas centenas de milhares de rolos de papiro. Isso gerou à biblioteca uma fama incomparável de repositório de conhecimento, atraindo estudiosos de vários lugares que tinham interesse em seus conhecimentos em ciência, matemática e artes. Eventualmente, ela até originou uma instituição irmã, o Serapeu, em outro templo próximo; mas, por volta 145 a.C., Ptolomeu VIII expulsou todos os estudiosos estrangeiros em meio a uma disputa de sucessão.
Incêndio
Em 48 a.C., uma agitação social em todo o Egito deu início ao fim da gloriosa biblioteca. Isso porque aconteceu uma guerra civil que, por si só, vitimou parte da Biblioteca de Alexandria, com o imperador romano Júlio César e seus homens viajando até lá para defender Cleópatra, sua aliada, que entrou em conflito com o irmão, Ptolomeu XIV.
Durante essa viagem, para tentar impedir que a frota de Ptolomeu deixasse os portos, os romanos tomaram uma decisão brutal: incendiaram os navios e cais de Alexandria. E, conforme o fogo se alastrava, o museu acabou sendo atingido. Nesse aspecto, fontes históricas divergem parcialmente. Alguns historiadores antigos, como o grego Plutarco, atestaram que a biblioteca foi completamente queimada. Já o filósofo romano Sêneca, o Jovem, citou que cerca de 40 mil pergaminhos foram destruídos com os incêndios.
Outras fontes posteriores ainda mencionavam o Mouseion, o que indica que o templo seguiu em uso; logo, algo ainda poderia ter sobrevivido aos incêndios de César. Além disso, aparentemente estudiosos seguiram trabalhando por lá, com coleções que, caso a biblioteca tivesse sido completamente destruída, estariam queimadas; indicando que ainda havia obras sobreviventes.
Queda da biblioteca
Porém, como a história já nos mostrou, a Biblioteca de Alexandria acabou caindo completamente. Seus remanescentes e acadêmicos afiliados sofreram um lento declínio com o tempo, bem como a própria cidade de Alexandria. Segundo o bibliotecário e curador Sebastian Modrow, no livro ‘Libraries, Archives and Museums’, a Biblioteca de Alexandria “definhou lentamente devido ao abandono”. Sob domínio romano, o que foi um grande centro do conhecimento grego acabou sendo ignorado pelos líderes romanos e, após isso, há poucas informações sobre o que aconteceu com o que restou da biblioteca.
As teorias indicam que ela pode ter desaparecido, mas há evidências de que o Serapeu conseguiu sobreviver. Mas apenas para ser incendiado mais duas vezes posteriormente. Parte desses novos incêndios se associa à disseminação do cristianismo por Roma. Governantes cristãos como Teodósio I começaram a combater por todo o Império o que consideravam “idolatria pagã“; e, em 391 d.C., um grupo de estudiosos do Serapeu atacou cristãos de Alexandria, enfurecidos com o ataque romano aos seus deuses e musas. Em resposta, os cristãos vandalizaram e destruíram o Serapeu, devastando mais obras da biblioteca, que sobreviveram aos primeiros incêndios por Júlio César.

A biblioteca também sofreu mais incêndios criminosos posteriormente, mas em 642 d.C., com a captura de Alexandria por forças árabes de maioria islâmica comandadas por Amr ibn al-As na conquista do Egito pelos califas Rashidun, orquestraram mais danos ao acervo cultural. Um texto do século 13 indica que os invasores árabes foram ordenados a destruir a grande biblioteca, e supostamente usaram seus livros como combustível para aquecer a água do banho na ocupação que se seguiu.
Porém, vale mencionar que historiadores modernos atestam que essa teoria provavelmente é um mito criado e propagado por cristãos medievais desconfiados do Islã, tendo em vista que uma característica marcante da civilização islâmica medieval era a tolerância intelectual, e a recepção ao conhecimento de outras culturas.
Por mais que ainda hoje muitas pessoas associem o declínio da Biblioteca de Alexandria a Júlio César, e sua queda ainda seja marcada por muitas incertezas, estudiosos ainda debatem sobre o assunto. Alguns especialistas culpam professores cristãos de 391 d.C. por devastarem os remanescentes do conhecimento clássico que ainda existiam por lá, enquanto outros o atribuem à destruição do Califado Islâmico e à suposta rejeição do conhecimento não muçulmano.
Independente do que explique realmente o declínio da Biblioteca de Alexandria, fato é que, com o tempo, até as referências ao museu desapareceram, e ela segue como uma memória do passado que deixa um sabor amargo a estudiosos de todo o mundo, devido à preciosidade de seu acervo e da perda irreparável de conhecimentos do Mundo Antigo proveniente de sua destruição.
Fonte: Aventuras na História



















