Bem-estar Comportamento & Equilíbrio

Transtorno alimentar e imagem corporal

O que a psicanálise revela sobre esse sofrimento silencioso

Os transtornos alimentares são, hoje, uma das expressões mais dolorosas do mal‐estar contemporâneo. Muito além da comida e do corpo, eles revelam conflitos profundos, falhas na construção da autoestima e uma relação fragilizada com a própria identidade. Anorexia, bulimia, compulsão alimentar e episódios de hiperfocalização no corpo são apenas manifestações de algo que, para a psicanálise, nasce muito antes de qualquer dieta: surge na história emocional do sujeito, em suas primeiras relações, e na forma como ele se percebe e é percebido.
A sociedade atual oferece um terreno fértil para essa dor. Vivemos em uma cultura da performance, da hiperexigência e da comparação constante. A imagem corporal tornou‐se uma espécie de “cartão de identidade emocional”: muitas pessoas acreditam que precisam caber em padrões para serem amadas, admiradas ou até mesmo aceitas. A psicanálise, porém, propõe que o problema não está no corpo em si, mas na construção simbólica que o sujeito faz dele.

O corpo como lugar de inscrição do inconsciente
Para Freud, o corpo não é apenas biológico; é um corpo marcado pelas experiências afetivas, pelas relações com os cuidadores e pelas palavras que nos constituem. Assim, quando alguém desenvolve um transtorno alimentar, o que está sendo afetado não é apenas o estômago ou o peso, mas o próprio “corpo simbólico” — o corpo como representação emocional.

A comida, por sua vez, é um dos primeiros vínculos entre mãe e bebê. É por meio dela que o sujeito aprende sobre presença, cuidado, frustração e segurança. Quando esse vínculo é atravessado por falhas, excessos, ausências ou exigências, o corpo pode se tornar palco de conflitos não elaborados. O transtorno alimentar surge como uma forma de tentar retomar controle, expressar sofrimento ou, paradoxalmente, silenciar emoções que não puderam ser ditas.

Imagem corporal: espelho, comparação e identidade

(Foto: iStock)

A imagem corporal não é objetiva. Duas pessoas com o mesmo peso podem assumir que seus corpos são completamente diferentes. Isso acontece porque a percepção do corpo é profundamente afetiva. É um olhar atravessado por memórias, falas internas, críticas, comparações e expectativas.

A psicanálise aponta que, muitas vezes, o sujeito internaliza um olhar externo — da família, da sociedade, das redes sociais — e passa a viver sob a tirania desse olhar. Ele se torna refém de uma fantasia: a de que, ao atingir determinado corpo, terá resolvido aquilo que dói internamente. Mas essa busca funciona como um buraco sem fundo, porque o problema não é o corpo, e sim a relação com o próprio desejo e com o próprio valor.

Por isso, não é raro que pessoas com transtornos alimentares relatem que, mesmo após emagrecer ou mudar drasticamente de aparência, continuam insatisfeitas. O espelho não mostra a realidade: mostra a narrativa emocional que foi construída ao longo da vida.

A cultura do ideal e a ferida narcísica
A psicanálise contemporânea releva outro ponto essencial: os transtornos alimentares se intensificam em sociedades que cultivam um ideal corporal rígido. Esse ideal funciona como uma “ferida narcísica”: quanto mais o sujeito tenta alcançá‐lo, mais se sente distante, incapaz ou inadequado. O corpo, então, vira um campo de batalha. Cortes, jejuns, vômitos, excessos e privações são tentativas de lidar com sentimentos como angústia, insegurança, rejeição, culpa e desejo de controle. O transtorno alimentar não é sobre vaidade — é sobre dor.

(Foto: Freepik)

A psicanálise como caminho de escuta e reconstrução
O tratamento psicanalítico não se concentra na comida ou na dieta. Ele busca compreender:
👉 O que o sintoma representa?
👉 Qual a função emocional desse comportamento?
👉 O que o sujeito tenta comunicar com seu corpo quando as palavras faltam?
👉 Que feridas da infância ou da adolescência reaparecem na forma de obsessão com o corpo? Que ideal impossível ele tenta alcançar para sentir‐se digno?

Na escuta terapêutica, o sujeito pode, pouco a pouco, elaborar seus conflitos internos, resgatar sua identidade e reconstruir sua autoestima. Não se trata de ensinar alguém a “aceitar seu corpo”, mas de ajudá‐lo a compreender por que esse corpo se tornou um inimigo, e por que a comida passou a ser usada como arma, refúgio ou punição. A psicanálise devolve ao sujeito a capacidade de reconhecer‐se para além da forma física. Ela possibilita que ele construa um corpo vivido, sentido e pertencente — e não apenas um corpo comparado.

O impacto das redes sociais na subjetividade
No cenário atual, as redes sociais funcionam como vitrines do ideal. Fotos editadas, corpos padronizados e a cultura da “vida perfeita” potencializam inseguranças. A psicanálise entende esse fenômeno como um cenário de reforço do narcisismo frágil: quanto mais o sujeito busca aprovação externa, mais se desconecta de si mesmo.

Isso contribui para o aumento dos transtornos alimentares, especialmente entre adolescentes e jovens adultos, que ainda estão formando sua identidade emocional. A comparação constante cria uma sensação de insuficiência que adoece.

Conclusão: mais que uma questão de corpo, uma questão de alma
Os transtornos alimentares são, antes de tudo, sofrimentos da alma expressos no corpo. São tentativas de dar forma a dores invisíveis. A psicanálise convida o sujeito a entrar em contato consigo mesmo, a compreender o que está por trás da angústia, e a ressignificar sua relação com seu corpo.

Em uma sociedade que cobra perfeição, olhar para dentro tornou‐se um ato de coragem. E, talvez, seja justamente esse olhar profundo que permita a construção de uma imagem corporal mais humana, real e possível — uma imagem que nasce não do espelho, mas do encontro com quem realmente somos.

Núbia Arruda

Núbia Arruda

Núbia Arruda Formada em Administração Psicanalista Clínica

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