Com jogos e violência, Round 6 atrai atenção de crianças e jovens. Como a escola lida com isso?
Especialistas alertam que esse conteúdo pode promover a banalização da violência, além de aumentar a ansiedade e irritabilidade entre os estudantes
Com milhões de espectadores desde sua estreia, em setembro, na Netflix, a série sul-coreana Round 6 também despertou a curiosidade de crianças e jovens. Contrariando a classificação indicativa de 16 anos, muitos estudantes começaram a acompanhar a série e levaram essa discussão para a escola, o que colocou em alerta educadores, famílias e até mesmo o próprio diretor da série, Hwang Dong-hyuk.
De acordo com informações do jornal Le Parisien reproduzidas pelo UOL, cinco crianças foram recentemente atendidas em um hospital na França, após serem esmagadas por colegas mais velhos que tentaram reproduzir uma das brincadeiras retratadas na série, que está em primeiro lugar entre os conteúdos mais vistos na plataforma de streaming.
Espantado com um público tão jovem, o próprio criador da série reforça que não se trata de um conteúdo indicado para crianças. “Espero que os pais e os professores ao redor do mundo sejam prudentes para que elas não sejam expostas a esse tipo de conteúdo. Mas, se já viram, espero que os adultos as ajudem a entender o significado do que está por trás da tela. Torço para que haja boas conversas”, afirmou Hwang Dong-hyuk, diretor da série.
Antes de falar sobre possíveis efeitos negativos desse tipo de conteúdo para crianças, adolescentes e, em alguns casos, até mesmo adultos que se aventuram pelos nove episódios da produção, um breve resumo para quem ainda não acompanhou: ela retrata uma competição entre 456 pessoas endividadas que decidem entrar em jogo de sobrevivência por um prêmio bilionário. É apenas no local dos ‘jogos’ que os participantes descobrem que não evoluir de fase significa morrer. Muitos dos níveis são representados por brincadeiras infantis, como bolinha de gude e cabo de guerra. Na primeira etapa, uma boneca gigante, de costas, canta ‘Batatinha frita 1, 2, 3’, e os competidores devem correr e ficar ‘estátua’ quando a boneca virar de frente. Quem se mexer, morre.
Risco da identificação
Para Gustavo Estanislau, especialista em psiquiatria da infância e da adolescência e coordenador do projeto Cuca Legal, iniciativa ligada ao Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a diferença entre a série Round 6 e filmes como Jogos Vorazes e Divergente, que também retratam mortes violentas, é o potencial de identificação.
“Na série sul-coreana, vemos personagens com os quais conseguimos nos identificar. Essa proximidade com a nossa realidade faz com que o impacto possa ser maior do que filmes como Jogos Vorazes e Divergente, que se passam em cenários mais distópicos, assim como os contos infantis, que também acontecem em realidades muito diferentes. Isso permite um julgamento um pouco mais afastado e parcial do que está sendo assistido”.
A capacidade de filtrar informações
Apesar de Round 6 ser uma alegoria que propõe reflexões e críticas sobre a sociedade moderna, muitas dessas nuances podem não ser devidamente assimiladas por crianças e adolescentes, o que torna o consumo desse conteúdo ainda mais preocupante para o público dessa faixa etária que, ao longo dos episódios, é exposto a cenas de violência, suicídio, sexo e tráfico de órgãos.
Um dos grandes problemas dessa exposição está no fato de que, quanto menos idade, menor a capacidade desenvolvida para filtrar as informações. Um adolescente, por exemplo, tem mais repertório e, portanto, mais capacidade de discernir o que é realidade e o que é ficção, o que nem sempre acontece com os menores. Dessa forma, um dos riscos é a banalização da violência, que, na própria série, é encarada como entretenimento e diversão para a figura do ‘líder’.
“No início da série, as pessoas tendem a ficar mais chocadas com os tiros, e, com o passar dos episódios, vamos nos adaptando e isso vai causando um impacto menor, se transformando em um evento mais banal. Pessoas adultas conseguem entender a crítica do personagem na situação de poder se divertindo com pessoas em uma posição enfraquecida e fragilizada. Mas uma criança menor tende a ler essa situação sem tanto senso crítico, identificando como algo divertido e que pode ser repetido no dia a dia”, afirma Gustavo.
Nesse sentido, os estímulos retratados no seriado têm o potencial de provocar alguns efeitos principalmente no sistema de alerta das pessoas. “São diversas as cenas chocantes e impactantes, o que causa um aumento no estado de alerta da pessoa — seja criança, adolescente ou adulto. Isso pode exacerbar estados de ansiedade e de irritabilidade, trazer à tona medos e preocupações excessivas e atrapalhar o sono e a concentração”.
Atrativos: brincadeiras e a cultura coreana
Alguns fatores contribuem para explicar porque uma série que trata de assassinatos, suicídio e tráfico de órgãos está fazendo sucesso entre o público mais jovem. Uma delas é a simbologia de brincadeiras infantis, já que cada fase da competição representa jogos e brincadeiras, com bonecos e cenários coloridos. No início da série, depois de ouvir a explicação, um dos personagens chega a questionar ‘aquele jogo da nossa infância?’. Esse contexto contribui para aproximar a série do universo das crianças.
Outra questão que deve ser observada é o potencial de atração que a cultura coreana exerce atualmente. A música pop e desenhos animados fazem com que cada vez mais pessoas consumam conteúdos da cultura asiática.
O que significa a classificação indicativa
Apesar dos grandes impactos que a série sul-coreana tem causado, Gustavo reforça que não é novidade o fato de que crianças e jovens estão consumindo conteúdos inadequados para sua idade. Ele exemplifica que a grande maioria dos jogos eletrônicos mais populares atualmente são inadequados para boa parte da população que está jogando. Tudo isso está diretamente ligado ao tema da classificação indicativa.
Para muita gente trata-se apenas de um número que aparece na descrição dos conteúdos, o que é considerado uma concepção equivocada. Beth Carmona, diretora de conteúdo da comKids, explica que ainda falta uma conscientização do porquê existe classificação indicativa e de que esse instrumento deve ser levado a sério.
“Talvez, o tema da classificação indicativa deva ser mais debatido na sociedade, nas famílias, na própria mídia e nas escolas. Além disso, a própria classificação nem sempre informa se o conteúdo tem cenas de violência, brutalidade ou sexo explícito. Muitas vezes são utilizados apenas símbolos visuais”, comenta Beth, apontando a importância de uma reflexão e até mesmo de um possível aprimoramento da ferramenta.
O que famílias podem fazer
Para Beth, se por um lado as plataformas de streaming ampliaram as opções e deram maior liberdade de escolha aos espectadores, por outro se depararam com o consumo de conteúdos inadequados por certas faixas etárias. “Há formas de bloquear esse consumo, como o controle dos pais, mas nem sempre existe a conscientização deles para isso. Por isso que a literacia midiática, ou a educação para o mundo audiovisual e interativo, está se tornando um elemento importante dentro das escolas e das famílias. O mundo de hoje pede isso de maneira urgente”, explica a diretora.
Nesse sentido, Gustavo comenta que os adultos precisam discutir a questão de forma mais séria e ampla. A ideia é não ter apenas a série Round 6 como pano de fundo, com o objetivo de tornar essa conversa sobre os conteúdos mais geral. Não adotar uma postura julgadora diante de pais e responsáveis que têm um perfil mais liberal, mas sim oferecer às pessoas informações embasadas em evidências a respeito dos possíveis impactos que esse tipo de conteúdo pode ocasionar a curto e médio prazo.
“Há formas de bloquear esse consumo, como o controle dos pais, mas nem sempre existe a conscientização deles para isso. Por isso que a literacia midiática, ou a educação para o mundo audiovisual e interativo, está se tornando um elemento importante dentro das escolas e das famílias. O mundo de hoje pede isso de maneira urgente”, explica a diretora
É preciso ter uma compreensão mais aprofundada sobre a série, sobre as potenciais consequências de crianças assistirem e, principalmente, o que está motivando o consumo desse conteúdo. Isso pode ajudar as famílias na hora de decidirem qual é o melhor caminho a seguir, e nem sempre é uma simples proibição ou restrição possibilitada pelas plataformas.
Quando crianças decidem assistir à série por curiosidade, Gustavo defende que apostaria no diálogo franco e cuidadoso entre pais e filhos, para que, se for o caso, a criança entenda que ainda não está pronta para consumir aquele conteúdo. “Se esse diálogo não for bem-sucedido e a criança discordar veementemente, a chance de valorizar ainda mais a série e buscá-la de formas que os pais não possam descobrir acaba aumentando, gerando um impacto muito ruim. Então o diálogo é o caminho. No caso de famílias que consideram que a série é adequada para um adolescente, por exemplo, podem assistir junto e conversar sobre, para que possam detectar algum tipo de problema que surja a partir disso”.
“Considerando que a série Round 6 já ultrapassou os desenhos infantis mais famosos da atualidade, vejo o quanto a cultura do FOMO [do inglês, “fear of missing out”, ou seja, um medo ou receio de ficar de fora de algo que todos estão comentando ou consumindo] fica mais presente, pois as pessoas têm a necessidade de pertencer a um grupo e isto leva ao medo de perder uma informação, série ou ser excluído do que está acontecendo”, explica a consultora e pedagoga Lígia Monteiro, CEO da Trinità Educativa, especialista em tecnologias educacionais e mestre em comunicação educacional e mídias digitais.
Debate na escola
Enquanto também professora, especialista em tecnologia educacional e mídias na educação, Lígia teve contato com algumas escolas que estão buscando amenizar os efeitos ocasionados pela série e criar ações pedagógicas. Dessa forma, ela reforça que há possibilidades de estratégias a serem desenvolvidas em diferentes frentes: entre a equipe pedagógica, entre a escola e as famílias, e diretamente com os alunos.
Em primeiro lugar, Lígia pontua a importância da conscientização de todos os envolvidos no contexto escolar, com um bate papo que encaminhe para reflexões sobre as entrelinhas da série e os perigos que o consumo desse conteúdo pode trazer para crianças e adolescentes.
Para as famílias, uma opção é a realização de um comunicado ou e-book interativo, abrindo espaço para que pais, mães e responsáveis possam colocar suas opiniões e, ao mesmo tempo, refletir sobre o assunto.
“Ouvir os pais e responsáveis é um caminho para novas estratégias traçadas pelos dois lados, sendo possível o trabalho mútuo e com resultados. Uma parceria bem construída pode ter resultados incríveis para todos envolvidos”.
Uma parceria bem construída pode ter resultados incríveis para todos envolvidos.
Com os alunos, são várias as possibilidades. Criar circuitos e outras brincadeiras que envolvam cooperação, colaboração e competição na hora do intervalo é uma delas. Entretanto, Lígia também pontua a potência que o diálogo tem nesse contexto. “Uma boa conversa com sinceridade, não para gerar medo, mas para observar o que pensam e até onde sabem pode funcionar. Seria como uma sondagem para iniciar ações pedagógicas com intencionalidade e objetivos claros para resultados concretos. Ativar o medo é perigoso, pois pode criar gatilhos mentais com outros jogos de tabuleiro humano”, afirma.
A criação de infográficos colaborativos, mapas e quebra-cabeças em sala de aula também consistem em estratégias para cada um apresentar o que pensa sobre a temática. “Claro que não há um espaço para proteger crianças e adolescentes da série Round 6, mas podemos contribuir com a consciência. Os resultados de alguns projetos que participei já aconteceram, e um dos benefícios foi o estreitamento das relações entre família e escola, caminhando juntas para o principal objetivo: o avanço dos estudantes. Outro resultado é a conscientização dos alunos quanto às temáticas delicadas da série, comparando com desafios que muitas vezes são expostos na internet”, completa Lígia.
Fonte: Porvir