Geral

Crise interpretativa e as múltiplas narrativas

Texto: Fernando Ribeiro da Silva Carvalho

Há muito tempo, a despeito das polêmicas existentes na seara jurídica envolvendo inúmeros institutos do direito, é cediço que texto é diferente de norma. A norma jurídica, então, passou a ser o produto do processo interpretativo, na maioria das vezes, tendo como ponto de partida um texto interpretável.
A grande questão, então, gira em torno das possibilidades interpretativas que dão azo às múltiplas narrativas. Percebe-se que, embora partindo do mesmo ponto, a intepretação construída pode levar a variados destinos, muitas vezes irreconciliáveis entre si.
Para melhor exemplificar o que está sendo proposto, farei uso da expressão “copo meio cheio x copo meio vazio”. Ao olhar para um copo em que seu conteúdo está tomado até a metade, uns afirmam que o copo está “meio cheio” e outros asseveram que ele está “meio vazio”. Percebe-se, entretanto, que o fato observado, o qual se compara a um texto escrito na área do direito, é o mesmo para ambos os observadores, e, mesmo assim, as conclusões podem ser distintas.
Isso porque o processo de interpretação sofre diversas variáveis, muitas vezes relacionadas com o que o observador-intérprete já carrega de informação, conhecimento e sensações. Por exemplo, para quem esteja sedento por água, um copo pela metade pode ser visto como um copo “meio vazio”, dada sua necessidade de hidratação. Por outro lado, se o observador intérprete estiver saciado pela ingestão exagerada de líquido, ao avistar o copo pela metade, pode ter a sensação de que ele esteja “meio cheio”, já que não aguenta mais beber líquido algum.
Passando para a seara do direito, temos diversas polêmicas levantadas, fruto, inclusive, de julgamentos conhecidos e famosos, cujo pano de fundo foram as diversas interpretações sobre o texto constitucional. Para exemplificar de forma didática e mais fácil, podemos apontar o julgamento da possibilidade ou não de efetivação da prisão em segunda instância, recentemente analisada pelo Supremo Tribunal Federal.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988 e vigente até hoje, estabelece que a prisão só seria viável, em regra, após a cristalização de uma condenação judicial de uma pessoa. Isto é, quando alguém fosse condenado e não houvesse mais a possibilidade de recurso, tornando-se a decisão imutável, aí sim a pessoa poderia ser presa.
A despeito do texto constitucional, outros intérpretes assumiram o comando normativo como sendo possível que a prisão acontecesse após julgamento de segunda instância, sob a argumentação de que a condenação estaria quase perene, com poucas chances de reversão nos Tribunais Superiores. Observa-se que essa interpretação jurídica é pouco consistente, pois a imutabilidade não pode ser confundida com improbabilidade. Mas, fato é, que a crise interpretativa gera narrativas mil.
Outros exemplos poderiam ser dados no campo jurídico de aplicação da norma legal, mas prefere-se agora passar para a fase final deste pequeno enxerto, apontando outros exemplos de narrativas infundadas, embora possivelmente acobertadas pela crise interpretativa, agora na seara política.
Muitos estudos apontam o decréscimo no número de mortos pela pandemia da covid-19 relacionado à ampla vacinação da sociedade em geral. Tornam-se científicos tais estudos quando há metodologia aplicada e pertinência entre o resultado e o caminho percorrido para se chegar a ele. Os resultados podem (e devem!) ser confrontados quando fica possível a verificação da incongruência metodológica aplicada. Afinal, deve-se colher laranjas de uma laranjeira, e não morangos.
Acontece que, politicamente falando, os discursos são fadados às narrativas diversas, não só pela crise interpretativa já consolidada, mas também pelos diferentes pontos de partidas analisados, seja por descuido do analítico intérprete, seja por sua má-fé.
No primeiro caso, haveria negligência do intérprete nos casos de confusão de informações não verificadas. Trazendo o exemplo da queda no número de mortos frente à vacinação, seria o caso de alguém subjugar a vacina por ter medo. Quanto à má-fé, seria o intérprete afirmar que a vacina é ineficaz, apenas para que ninguém mais a ela se submeta, somente tendo como veia argumentativa sua crença de que ela de fato não traga resultados ou apenas por não concordar com a vacinação sem fundamento científico e plausível nenhum.
Opinião deve ser respeitada, mas não pode ser “comprada ou vendida” com status científico. A diferenciação, portanto, de uma interpretação plausível e científica de outra narrativa qualquer, pauta-se na coerência da metodologia e resultados apresentados no processo interpretativo.
Cuidado! A impaciência não é a melhor maneira de harmonizar pensamentos e interpretações distintas, mas sim estar apto a conhecer os fundamentos da afirmação de outrem, mesmo que em primeira análise não esteja em consonância com o que você ache.

Advogado. Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo
Professor universitário

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