Café Coado e…Casos de Polícia: Quantos mortos têm no seu coração?

Texto: Gracimeri Gaviorno

Não é novidade que os policiais acolhem todos os dias a miséria social. Quando todo o sistema de proteção social falha, temos mais um Caso de Polícia. Nesta edição do café Coado, a partir de um desses casos de polícia, quero provocar uma reflexão sobre a necessidade de cuidar da saúde mental dos profissionais de segurança.
Era uma dessas segundas-feiras comuns do ano de 2009. A Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa — DHPP — localizada no Barro Vermelho, em Vitória, iniciava seu expediente com o desafio de entregar aos familiares os mortos do final de semana. O protocolo comum passava pelo reconhecimento do defunto no Departamento Médico Legal — DML. Os familiares, após este constrangimento necessário, se dirigiam à DHPP e eram submetidos a um interrogatório. Por fim, o procedimento terminava com a entrega do corpo para que os familiares pudessem sepultar os seus mortos, segundo o costume brasileiro.

Tomando em conta a missão da Polícia Civil, todo o trabalho deveria ser voltado para a elucidação do fato criminoso. A perícia sobre o corpo poderia revelar os vestígios e indícios necessários para compor o conjunto probatório. O interrogatório estava voltado para esclarecer o evento que culminou com a morte e para verificar a legitimidade em receber o corpo para sepultamento, com atenção às regras sanitárias de armazenamento, transporte e sepultamento.
Mas por trás de todo procedimento, aparentemente frio, existem pessoas: as pessoas enlutadas, em sofrimento profundo pelo passamento de seu ente querido. Também de pessoas falamos quando nos referimos aos policiais, cujo luto invisível não é tão somente por aquele corpo entregue à família, mas por todos os corpos, de todos os dias, que desnudam a face perversa da vida em sociedade. Ao mesmo tempo, para além do procedimento formal, são reveladas as tristezas contidas nas inúmeras histórias, de vidas e de mortes, contadas nos depoimentos, registrados ou não. E, ali, também e possível ver a necessidade de acolhimento das famílias envolvidas na sua própria dor e na desesperança de um futuro melhor.

E aquela era uma segunda-feira comum na Divisão de Homicídios. O Escrivão de Polícia, que aqui vou chamar pelo pseudônimo de Pedro, entra em meu gabinete e me diz: “Esta nossa profissão não presta não!”.
Olhei atentamente em seus olhos e indaguei: “O que é de todo dia que hoje bateu diferente em você, meu amigo?”.
Pedro não tinha como responder, mas todos nós policiais já sabíamos a resposta. Era aquela dor da entrega de mais um corpo. Era a dor da família que perdeu seu filho ecoando em nossa memória. Era a dor da desesperança. Sabíamos que poderíamos elucidar o crime, encontrar e prender o assassino, coletar as provas necessárias para que ele fosse condenado. Mas nada do que fizéssemos traria o defunto de volta à vida. Nada disso tiraria a dor daquela família. E, por esse motivo, crescia o sentimento de impotência.
Éramos tomados por um sentimento ímpar. E ainda que pudéssemos contar aos nossos familiares e amigos sobre o nosso cotidiano, eles nunca compreenderiam como, mesmo com um sorriso nos lábios, os nossos corações estavam em sofrimento profundo diante do depósito contínuo e cumulativo de tantas histórias dolorosas.


E assim, seguíamos, tentando proteger nossos sentimentos para sobreviver a tanta dor acumulada ao longo dos anos. E, quando chegávamos em casa cansados, exaustivamente machucados por mais um dia de coleta dos relatos das misérias humanas, queríamos ficar quietos, jogados num canto, buscando a necessária recuperação emocional.
Mas vinham as crianças querendo brincar e nosso cônjuge reivindicando afeto. Nesse momento, nossa disposição virava feto, embalado pelo bolsa amniótica do carinho da família, podendo crescer saudável e romper em alegria ou esvair-se num sentimento de cansaço emocional, culminando num acidente nada técnico, mas previsível, capaz de nos afastar da risibilidade, do prazer e do gozo.
E lá se vai em mais um dia, mais um Caso de Polícia!

Delegada de Polícia, Doutora e Mestre em Direitos Fundamentais, Especialista em Segurança Pública, Instrutora e Mentora para Lideranças