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Violência e criminalidade: Perda do “fio da meada” — Parte 3

“Fios” abandonados do grande “tear” social criam o seu próprio mundo, seu universo. Passam a existir. Por TER dinheiro, prestigio, fama, reconhecimento, passam a SER o “tal”, o “chefe”, o “gerente” da boca de fumo, o “soldado”, o “temido”, o “respeitado”, o “admirado”, a “mulher do chefe”

Coluna — Café Coado, com José Nivaldo Campos Vieira

Destacamos de forma oportuna, nesta breve introdução, que o tema abordado — defesa social/segurança pública — além de atualíssimo — constitui hoje objeto de preocupação em âmbito nacional. Mas, lamentavelmente, nem sempre foi assim. Por décadas, foi desconsiderado e relegado a um plano secundário, sob a ótica de que era um problema “da polícia”. Grande erro, cujas consequências podem ser sentidas pelo conjunto da sociedade. Exemplo do desinteresse pode ser visto no fato de que ele passou longe do foco de preocupação por parte dos parlamentares constituintes de 1986. Faremos, no momento certo, abordagem específica sobre este aspecto.
Desta forma, movido por carência, ausência, forte emoção, e, por ser causador de dor, sofrimento, desassossego, angústia; a despeito da falta de zelo e preocupação da sociedade na década de 80 — cujo foco principal era a retomada da normalidade democrática de nosso País; hoje a questão da defesa social/segurança pública movimenta e atrai, indistintamente, a atenção dos diversos segmentos da sociedade. Falta sinergia para transformar toda a energia (esforços, investimentos), em resultados efetivos.

Se antes não foi bandeira para eleição de nossos parlamentares constituintes, hoje, certamente, na eleição para síndico de um condomínio, o candidato que não colocar em sua plataforma a promessa de melhorar a segurança de seus condôminos, com certeza, não será bem-sucedido no pleito.
Preocupações justas para problema grave, ladeado a muito senso comum, faz surgir soluções milagrosas — “Elixires da eterna juventude”. Soluções simplistas, quase sempre prescrevendo MAIS do MESMO (mais cadeia, mais polícia, mais viaturas, mais câmeras, mais…, e mais…, e mais…).
Inegável a importância e imprescindibilidade das agências estatais, operadoras do direito. Inegável a importância de leis fortes e uma justiça criminal eficaz; do aparelho policial motivado, respeitado, bem aparelhado. Mas, tais segmentos, invariavelmente, atuam na consequência, no efeito. Visualizamos, de forma estereotipada, o efeito, imaginando que ele existe em si mesmo. Cegamo-nos em relação às suas causas. É disso que quero fugir. Não sei se consigo. Mas tento.

Neste sentido, de forma oportuna, faço um parênteses esclarecedor. Quando busquei os dois fatos históricos, por entender serem determinantes para compreensão do objeto da reflexão aqui proposto: a Revolução Industrial, no meado do século XIX (Parte 1); e a Segunda Guerra Mundial, na primeira metade do século XX (Parte 2); não quero aqui fazer abordagens de ordem política, econômica, ou mesmo ideológica em relação a tais acontecimentos.
Abordagens neste enfoque, em meu entendimento, hoje ainda não superadas, embora exaustivamente discutidas por décadas ao longo do século passado, produziram um mundo influenciado por correntes predominantes, que, com variações, algumas muito importantes, ainda hoje estão aí, e cuja atuação produz reflexos sociais, políticos e econômicos na sociedade. Podemos citar como exemplo de forte interferência dos reflexos mencionados, a pandemia do coronavírus.

Resumindo, não pretendo focar o assunto com cunho ideológico, político, político partidário (cuja atuação em nosso País se dá de forma deturpada e canibalista, muito usada para construir ou destruir governos). Faço a abordagem unicamente pelo aspecto social.
Busco os fatos com uma visão histórica e tento, a partir dela, contextualizar reflexos, ganhos, avanços, perdas, dele advindos. Não foram poucos os aspectos positivos deles decorrentes. Também são marcantes alguns aspectos negativos. O aumento da violência e da criminalidade é um destes.
O individualismo exacerbado, a indiferença, o não é comigo, no meu entendimento, tem relação direta com a crise na área da violência e criminalidade, hoje vivenciada no Brasil e, em particular, no Estado do Espírito Santo.

Como já disse, e muitos já disseram, criamos a sociedade do TER. Esquecemo-nos da do SER. Perdemos o “fio da meada”. Estamos abandonando inúmeros “fios” quando da construção do nosso tecido social. Não precisamos ir longe. Basta que caminhemos por algumas ruas dos Municípios da Grande Vitória, aonde iremos com certeza nos deparar com alguma “cracolândia”.

A Praça Duque de Caxias, no Centro de Vila Velha, virou ponto de moradia (Foto: Reprodução/Folha Vitória)

Já sendo “normalizadas”, sob o argumento do “não tem jeito”, “fazer o que”, vê-se nas “cracolândias” pessoas jovens, em fase produtiva, que deveriam estar contribuindo para o crescimento e fortalecimento de nosso País, constituindo suas famílias, criando seus filhos, com suas vidas destruídas…. e integrando, de forma cada vez mais agressiva e violenta, o mundo da criminalidade.
E pior ainda, os filhos gerados por estas pessoas jovens, constituem, em nosso Estado, em nosso País, milhares de crianças e adolescentes, que, em grande parte, sem opção, ou melhor, com a opção que lhes é apresentada, sem outra perspectiva, sem valores, sem educação, sem casa, sem saneamento básico, seguem, em hordas, o mesmo caminho e “destino” dos seus geradores.
Neste caminho, retroalimentam o muitas vezes milionário mercado das drogas ilícitas. Ontem maconha, cocaína. Hoje, o “crack”. Se nada continuar sendo feito, amanhã, com certeza, será outra droga. Ganham dinheiro, “status”, reconhecimento social em seu meio, e, acima de tudo “respeito” (imposto por medo, temor; pela ausência do Estado).

“Fios” abandonados do grande “tear” social criam o seu próprio mundo, seu universo. Passam a existir. Por TER (dinheiro, prestigio, fama, reconhecimento) passam a SER (o “tal”, o “chefe”, o “gerente” da boca de fumo, o “soldado”, o “temido”, o “respeitado”, o “admirado”, a “mulher do chefe”).
Neste mundo, criado a imagem e a semelhança do descaso, do abandono social, vivem a cada dia como seu fosse o último… como se fosse uma eternidade. Jovens, muito jovens, entram nele. E muito cedo dele partem. Perdem suas vidas, e levam muitas outras consigo. Lamentável. Duro. Desconcertante. Mas é um fato. Não há, de forma alguma, como desconsiderá-lo.

Agrilhoados em seu mundo, como no “Mito da Caverna” de Platão, só visualizam sombras, turvas, disformes. Nada além delas. Lhes faltam perspectiva, alternativa. Enquanto o estado não estiver realmente presente no mundo delas, continuarão morrendo, matando, roubando, causando desassossego social.
Atônitos, nós (e quando digo nós, me refiro a nós mesmos, a mim e a você), no auge do desespero, os denominamos de “bandidos”, “vagabundos”, e prescrevemos, como já dito, o remédio fácil: polícia, justiça e cadeia, ou seja, “elixir-paregórico” para curar a cólica, analgésico para a dor de cabeça. Sempre MAIS do MESMO.

E o que é pior, ainda. No nosso íntimo, bem lá no nosso íntimo, e bem baixinho para que “Deus não nos escute”, afinal somos cristãos, e, portanto um dia retornaremos ao nosso Criador, e neste dia não queremos ter problema com ele, desejamos para os criminosos algo além de polícia e cadeia.
Embora não legalizada, mata-se, extermina-se no Brasil, muito mais que em países que legalmente aplicam a pena capital. E mais, muito mais, que as perdas de vidas humanas em inúmeras guerras. No dia a dia, meses e anos seguidos, no Brasil muitos aviões lotados de pessoas caem…
Não e normal, não é natural ser assim. Não é compreensível a existência de um número tão grande e preocupante de pessoas que deveriam constituir o tecido social estarem descontinuados deste. De forma cega, propomos solução individual e imediatista. Atacamos o efeito, sem buscar a causa.
Vamos, mais uma vez, de forma emblemática, a um exemplo, a um fato real. Há alguns anos atrás, aluno de uma importante instituição de ensino superior de nosso Estado, um jovem, no auge de sua plenitude humana, depois de um dia de trabalho foi estudar. Terminada a aula, por volta das 23 horas, deslocou-se para o estacionamento onde pretendia pegar seu veículo para recolher-se em sua residência.

Imagem do fluxo da Cracolândia, na região central de São Paulo, em novembro de 2015 (Foto: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo)

De forma torpe, desumana, voraz, agressiva, foi abordado por outros jovens, estes em número de cinco que, lançaram-se sobre o jovem universitário e não apenas subtraíram o veículo, mas a sua vida. E pior, como verdadeiros bárbaros, de forma desumana, gravaram com a câmera do celular da vítima, com deboche, escarnio e requinte de crueldade, a perpetração do crime. Filmaram-se e filmaram a vítima aterrorizada, produzindo provas contra si mesmos.
Em relação ao fato, na oportunidade, por força de minhas atividades profissionais, recebi dirigentes da instituição de ensino e colegas de faculdade do jovem barbaramente assassinado, que cobravam, de forma justa, providencias no âmbito do poder público (polícia, justiça, prisão).
Disse que isto seria feito (e foi). Mas disse mais. Disse que com a prisão dos criminosos, com o julgamento, com a prisão e a condenação dos algozes do jovem assassinado (e foi o que aconteceu), o problema estaria longe de ser resolvida.
Disse mais ainda, e é preciso ter coragem para dizer isso, frente a um grupo expressivo de jovens, que, com toda razão, estavam ali perplexos, atônitos, revoltados, exigindo justiça, segurança, enfim, exigindo o direito de viver, e mais ainda, viver em paz, com segurança. Disse-lhes que todos os personagens envolvidos no trágico acontecimento, vitimizado e “vitimizadores” eram igualmente VÍTIMAS. Olharam para mim incrédulos. Continuei.
O jovem que perdeu a vida deixou uma lacuna irreparável, para seus amigos, para sua família, e é possível se estender mais: para a sociedade como um todo. Não há como, de forma alguma, secundarizar, minimizar fato desta natureza.
Na continuidade de nossa conversa, eles, incrédulos, me ouviram dizer: A perda da vida não retira a outra face do problema. Os algozes, também jovens, foram, como a sua vítima, gestados e vieram ao mundo, exatamente da mesma forma. Mas, digo agora, faltou-lhes algo. Passaram a se constituir “fios” desprendidos da “meada” que alimenta o grande tear que constrói o tecido social.
Um jovem, de forma torpe, havia perdido sua vida. Outros, igualmente jovens, perderam a liberdade. E disse-lhes, naquele momento de dor e sofrimento, diante dos dois fatos, o que deveria ser, também, objeto de preocupação minha, deles, enfim, da sociedade no seu conjunto, para todos nós que continuavam vivos.

Disse-lhes que os jovens criminosos, que haviam perdido a liberdade, dentro de algum tempo (alguns anos) sairiam dos muros dos presídios. Ganhariam, de volta, o direito à liberdade. Levando-se em consideração o modelo prisional adotado em nosso País, com grande probabilidade, retornariam à sociedade de forma pior em relação à que entraram.
Sairiam mais “preparados”, “aperfeiçoados” para atuarem no mundo do crime. De regra mais violentos, de regra mais agressivos. Nem sempre foi assim. Não pode, e não continuará sendo assim. Há solução. Possível, acessível, exequível. Basta que, conscientes, nós, todos nós, sociedade brasileira, sociedade capixaba, no seu conjunto, encaremos o problema de frente.
Temos, de forma inexorável, que reconectar os “fios das meadas” desprendidos do grande tear social. O tecido social não é naturalmente defeituoso. Nós o estamos produzindo desta maneira. Temos que mudar.
Não depende SÓ do outro. Não depende SÓ da polícia; SÓ de novos equipamentos, viaturas policiais, aumento do efetivo, armas, tecnologias; SÓ dos gestores responsáveis pela segurança pública e defesa social; SÓ da justiça; SÓ do legislador; SÓ da igreja; SÓ dos políticos; SÓ do governo; SÓ das organizações sociais; SÓ da mídia, SÓ da família; SÓ da escola. Não, não depende SÓ deste ou daquele segmento.
Não há UM CULPADO, como inexiste solução de UM SÓ. Depende de TODOS NÓS, JUNTOS.
Como na velha e conhecida história do barco, navegando no oceano, com um buraco no casco, entrando água. Não tem meu lado, não tem minha parte, não tem meu partido, meu governo, não tem oposição a este ou àquele governo, não tem minha responsabilidade.
Ou TODOS contribuem para a solução do problema, ou TODOS naufragam.
Continuemos nossa reflexão no próximo artigo.

José Nivaldo Campos Vieira
Advogado, formado em Filosofia,
coronel da Reserva da PMES e
empresário da área de segurança privada
nivaldo@seiinteligencia.com.br

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