Violência e criminalidade: Perda do “fio da meada” — Parte 7
Hoje o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. Só “perdemos” para os EUA e a China
Coluna — Café Coado, com José Nivaldo Campos Vieira
Há algum tempo escrevi uma série de artigos, como se fosse em forma de capítulos, nos quais tento refletir a questão da violência e da criminalidade. Para atender honroso convite desse Jornal, de forma contextualizada, os revisei. Meu objetivo aqui é fugir do senso comum estabelecido no paradigma de que a solução está ligada (única, ou mesmo prioritariamente) à ação (na atuação) das instituições policiais, estas, enquanto representantes do poder estatal, no exercício do CONTROLE SOCIAL FORMAL, em cumprimento do seu poder/dever enquanto agências operadoras de segurança pública, com responsabilidade nos segmentos da prevenção (secundária) e no da repressão.
Entendo que a responsabilidade (poder/dever) de atuar em prol da redução da violência e da criminalidade, provendo a tão almejada (necessária, cobrada, esperada, desejada, clamada) DEFESA SOCIAL (SEGURANÇA PÚBLICA, PAZ SOCIAL) da população é, sim, claro, INCLUSIVE, responsabilidade TAMBÉM das instituições policiais. De forma inequívoca, estas são extremamente necessárias, imprescindíveis. Ou seja, a questão é sim, também, um problema DE polícia, mas, seguramente, não é um problema DA polícia.
Em uma sociedade, para PROPORCIONAR (hoje, no Brasil e no ES, há carência), MANTER (quando existir, tornar perene), ou mesmo RESTABELECER (quando existir, nos casos pontuais que for quebrada, adotar ações para que retorne à normalidade) a ORDEM SOCIAL, quando há necessidade de se chamar, de se empregar A POLÍCIA, este acontecimento traz consigo mesmo a clara sinalização no sentido de que algo não funcionou em momentos anteriores, determinantes. E, portanto, precisa ser tratado para que não se repita.
Quando a regra (e não a exceção) é esperar que A POLÍCIA cumpra o papel de proporcionar, manter e restabelecer a ordem social, aí a coisa está complicada, muito complicada. Algo está muito errado. Algo falhou. Falhou (e vem falhando ao longo de décadas), em momento anterior à necessidade de emprego das agências operadoras de segurança pública (polícias), o importantíssimo segmento de prevenção primária (também denominada de “proação” ou “intervenção precoce”). Hoje não são poucos os casos em que as famílias (pais, mães), em que as escolas (professoras, diretoras), segmentos vitais de atuação no campo da prevenção (primária), sentindo-se ameaçadas, têm que recorrer à polícia. E não são casos isolados. Definitivamente, algo está muito errado.
Em situação de normalidade nas relações em sociedade, a simples presença de policiais, de forma ostensiva (uniformizados) fazendo rondas, a pé ou transportados, geram salutar integração com a comunidade, e produzem efeito de persuasão e dissuasão em relação a possíveis (e eventuais) intenções de práticas delitivas. Tal atividade pode ser classificada de prevenção secundária.
Quando ocorre (e sempre poderá ocorrer) a necessidade de se chamar A POLÍCIA para situações mais simples, denominadas de “baixo potencial ofensivo” (como exceção, e não como regra), posteriormente à atuação policial, por vezes a pessoa envolvida não ficará presa. A decisão (ainda no âmbito policial, ou mesmo por decisão judicial, em uma audiência de custódia), da não adoção da privação de liberdade, por si só não resolve o problema. Em tal situação, há necessidade de atuação do também importantíssimo segmento da prevenção terciária (tratamento), principalmente hoje em decorrência da epidemia do consumo de drogas ilícitas. No Brasil, no ES, é evidente a carência neste segmento.
Vejamos, em relação à situação acima, um caso dramático. Felipe, 31 anos, morador de rua e viciado em craque, tinha um histórico de vários envolvimentos com práticas delitivas, classificadas como sendo de “baixo potencial ofensivo”, motivo pelo qual era preso e logo depois era solto. Em 2018, em uma rua de Vila Velha, lançou um vergalhão contra o veículo no qual se encontrava uma empresária. O objeto perfurou seu crânio, provocando sua morte. Agora, preso por homicídio, foi submetido a júri popular e condenado a 26 anos de prisão.
Felipe é fruto de falhas na área das prevenções, tendo sua ação contida na área da repressão (prisão, condenação). Porém, cabe sim, uma reflexão. O assunto “Felipe” não se encerra com sua condenação. Jovem (apenas 31 anos de idade), ficará na prisão por quantos anos? Como sairá dela? Estará ele pronto, reabilitado para o convívio em sociedade? É possível se falar em “reinserção social”, se na sua história de vida, até a prática do crime, ele nunca esteve “inserido” socialmente? … Complexo.
A falha, gravíssima, encontra-se no fato de que, no último instante, no momento último em que ainda seria possível se atuar no campo da prevenção (terciária, tratamento), e aqui, de forma particular na questão do uso e abuso das drogas ilícitas (alimentador e fomentador da criminalidade), que exige ações no seu espectro mais amplo, e não apenas na importantíssima área da saúde (tratamento médico, internação hospitalar), mas, também, na área social, isso não aconteceu, ou, mesmo que esteja acontecendo, não estamos obtendo a efetividade necessária.
Quando chega no momento acima, por falta de efetividade nas ações de prevenção terciária, a questão é remetida, “transferida” diretamente para o segmento da repressão (uso da força, do poder de polícia do Estado, prisão, condenação). Neste, processa-se o ciclo das agencias públicas operadoras do direito, dotadas do poder/dever para o exercício do controle social formal aplicado à questão, no caso do Brasil, em relação à epidemia de violência e criminalidade, para cuidar das práticas delitivas (penais) ou infracionais: POLÍCIA – JUSTIÇA – PRESÍDIOS.
De forma incisiva, perversa, consistente, no Brasil e no Estado do Espírito Santo, há algumas décadas vêm falhando o controle social informal, componente fundamental, determinante, que deve ser exercido de forma decisiva no âmbito da família; mas também, muito importante, na escola; na igreja; no trabalho; nos clubes sociais; nas associações de moradores… apenas para mencionar alguns dos mais importantes agentes. São nesses segmentos que se constroem e se transmite, de geração em geração, valores decisivos para o salutar convívio em sociedade.
Merece ser enfatizado que o controle social informal necessariamente antecede (deve ser assim) ao controle formal. Como já dito, este deveria atuar na exceção, aquele criando a regra. Não é assim que vem acontecendo em nosso País. Como falha o que deveria ser a regra; o que deveria ser a exceção passa a ser a regra. E a coisa subverte, se deturpa.
Quando o controle informal (extremamente vantajoso para a sociedade no aspecto custo x benefício, ou seja, de custo baixo e produz excelente benefício) falha, não funciona, não produz resultado satisfatório, desejado, ocorre o descontrole e tem-se a necessidade do emprego do controle formal (sempre, de maior custo, de custo muito mais elevado, e de benefício complicado, pois quando é chamado a atuar, de regra, o “leite já está derramando”, ou pior, “já foi derramado”).
Em decorrência das falhas, para corrigir o problema, na busca de solução, em situação de crise, em nosso País e nosso Estado do Espírito Santo recorre-se, de forma insistente e preponderante, ao controle social formal: MAIS polícia — MAIS justiça — MAIS presídio.
Vejamos aqui, rapidamente, o momento do “MAIS presídio”, momento que se atua quando TUDO FALHOU, momento da repressão, e como já dito, deveria ser a exceção, e não a regra como vem acontecendo. Em números absolutos, hoje o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. Só “perdemos” para os EUA e a China. Até alguns poucos anos atrás estávamos na quarta posição, mas conseguimos “ultrapassar” a Rússia. Ranking incômodo. Em valores proporcionais (número de pessoas presas por grupo de 100 mil habitantes), ocupamos a desonrosa 26ª posição em um grupo de 222 países.
Presídios abarrotados, com excesso de pessoas presas em relação ao número de vagas existentes; dificuldade na gestão das unidades prisionais; população carcerária formada em sua esmagadora maioria por pessoas jovens; presídios considerados verdadeiros “barris de pólvora” … os dados evidenciam o agravamento do problema da segurança pública brasileira.
A questão da violência e da criminalidade no Brasil, como já dito, tem nuances, características, fatores únicos. É datada. Se nós não os compreendermos, e compreendendo-os não buscarmos aplicar as soluções que a questão exige, a coisa vai continuar complicada. É sobre estes aspectos que trato na sequência de artigos que estou escrevendo.
Assim, seja no Brasil, seja no Estado do Espírito Santo, os números relacionados ao “MAIS presídio” são grandes, e preocupantes. Muito preocupantes. Em todos os sentidos. Vamos destacar apenas alguns deles: (i) Excesso de pessoas presas (e a sociedade cobra dos operadores do controle social formal mais prisões, e também que os condenados fiquem mais tempo nelas, e assim vai…); (ii) Em espaços inadequados (e a sociedade reclama quando o poder público constrói presídios, pois poderia estar construindo escolas, hospitais, e assim vai…); (iii) Um número expressivo de presos aguardando (meses, anos) o julgamento — cuja sentença pode ser de condenação ou absolvição, o que significa que podem estar presas pessoas inocentes (e a sociedade reclama da morosidade da justiça, que já não sabe o que fazer com tantos processos, e assim vai…).
Mas vamos, continuemos seguindo a linha de raciocínio do quanto é complicada a questão do “MAIS presídio”. Só para atender à necessidade atual, teríamos que ter (HOJE), MAIS de 200 mil novas vagas em presídios no Brasil (em celas com espaço em torno de 2,5 a 4,0 m²/preso).
Vamos considerar presídios com capacidade para receber 500 presos (quantidade aceita pelo Departamento Penitenciário Nacional —Depen). Assim, no Brasil, há um déficit (HOJE), de 400 unidades prisionais, as quais seriam somadas às cerca de 1.500 existentes (muitas, inúmeras, em situação completamente inadequada para os fins a que destina), para ter capacidade de abrigar o total da população carcerária brasileira de HOJE. Daqui a algum tempo, no ritmo que caminhamos, caso continuemos fazendo o MAIS do MESMO, seguramente serão MAIS.
Vamos, somente a título de exemplo, demonstrar como é onerosa para a sociedade a opção pelo “MAIS presídio”. Considerando um custo médio de R$ 60 mil/vaga (sim, não se espante, são exatamente aqueles 2,5 a 4,0 m²/preso), o montante necessário para a construção dos 400 presídios (200 mil vagas) seria de R$ 12 bilhões.
E pior ainda (e pode ser pior). Não estamos aqui falando nos recursos necessários ao custeio e à manutenção do sistema prisional, em montante significativamente maior. E mais ainda (e pode ser pior mais ainda). Não estamos tratando do custo não mensurável (ou de difícil mensuração) decorrente, por exemplo: (i) Da decisão do Estado de privar de liberdade uma pessoa, de regra jovem, em idade produtiva, o que gerará ônus para o conjunto da sociedade; (ii) Do reflexo negativo em relação à família do aprisionado. Alguém tem que cuidar dela. De regra sobra para o Estado (e aqui de novo, ônus para a sociedade); (iii) Do reflexo negativo em relação aos filhos; (iv) Dos problemas decorrentes do isolamento físico (a segregação na cadeia, como regra), que provoca o isolamento social, que amplia e reproduz desigualdades sociais, que facilita a troca/aprimoramento de experiências criminais; etc., etc., etc.
O custo social decorrente do fato de se ter a opção de prender pessoas (como regra, para o controle social) gera para a economia do País (ou seja, para a sociedade no seu conjunto) um ônus maior (bem maior, muito maior) do que o de se construir e manter presídios. Assim, de forma definitiva, a solução do “MAIS presídio” não é a mais adequada.
Mas mesmo assim, vejamos. Digamos que prender, completar o ciclo do controle social formal (MAIS polícia — MAIS justiça — MAIS presídio) fosse a solução para a violência e a criminalidade, como todos sabemos, crescente por anos seguidos no Brasil.
Pois bem, embora a população carcerária brasileira tenha saltado de cerca de 90 mil presos em 1990 para os cerca de 700 mil hoje, ou seja, crescimento de quase 800% em 32 anos (no período a população brasileira aumentou algo em torno de 45%), nem por isso a violência diminuiu. Ao contrário, e o que é pior, aumentou.
Bem, as evidências estão aí. Não está funcionando. E desta forma, não vai funcionar. Temos sim, e é muito importante, que discutir as questões como a da redução da idade para responsabilidade penal em relação a adolescentes; do cumprimento total da pena, e sem “saidinhas”; da responsabilidade e do aumento de pena para este ou aquele crime de maior potencial ofensivo; do aprimoramento das agências operadoras do direito, etc., etc., etc.
Mas, se ficarmos SÓ nisso, só no MAIS do MESMO, acreditem, a coisa não vai funcionar. É sobre isso, é sobre a quebra deste paradigma que tento falar nos artigos que escrevo. Nestes, caminho a partir da Revolução Industrial do meado do século XIX, chego à Segunda Guerra Mundial, sigo no processo de industrialização. Foco, a partir da década de 60, fatores sociais, políticos e econômicos que impactaram a sociedade como um todo. Perpasso pela América Latina, e o Brasil no contexto do Continente. Fixo-me no Estado do Espírito Santo, meu objetivo. Quem sabe possa contribuir.
Já foram publicados seis artigos. No último (o sexto), chego ao final da década de 70. Meu projeto, meu compromisso (a título de colaboração) com o Jornal é escrever doze. Retorno no próximo (oitavo), tratando da década de 80, década da reconquista das liberdades, do restabelecimento da normalidade democrática em nosso País… E, paradoxalmente, do agravamento dos problemas sociais, com forte reflexo na área da violência e criminalidade, no Brasil e no Estado do Espírito Santo.
Onde erramos? Até lá.