Violência e criminalidade: Perda do “fio da meada”— Parte 8

No abandono social, surge como alternativa para os “fios da meada” desconectados do grande tear, o ingresso no “glamoroso” universo das drogas ilícitas, que começam, na época, a ganhar força. E não para mais. E o poder público, por omissão, por incompreensão, não se dá conta da gravidade
Coluna — Café Coado, com José Nivaldo Campos Vieira

Conforme falei no artigo anterior, vamos nos posicionar nos anos 80. Marcante para compreendermos o fenômeno da perda do “fio da meada”. Ainda muito jovem, há pouco mais de quatro décadas, no final da década de 70 e início da de 80, passei, como integrante da estrutura policial, a acompanhar a questão da DEFESA SOCIAL, da violência e criminalidade.
Depois de ter concluído, em 1978, o curso de formação de oficiais, na Academia de Polícia Militar do Estado do Paraná, com duração de três anos, passei a desenvolver atividades como policial militar do nosso Estado. Nessa época, e até o ano de 1992, os oficiais da PMES eram formados em outros Estados da Federação. A maioria havia se preparado nas Academias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. A minha turma foi a primeira formada no Paraná. Excelente escola.
Enfim, formado, passei a integrar, como já mencionado, lá nos idos da década de 80, a estrutura do Estado cuja atribuição, nobre, é a de prestar importante parcela de contribuição para a SEGURANÇA da sociedade.

Costuma-se comparar a árdua atividade policial como sendo a de um sacerdote. Há uma grande verdade nessa comparação. Ambos, policiais e sacerdotes, dedicam suas vidas em prol dos outros, as quais nem sempre conhecem, e são por esses reconhecidos. Os policiais vão além. Juram que exercerão as suas funções, se preciso for, com sacrifício de suas próprias vidas. E não são poucos os que a perdem.
A etimologia da palavra SEGURANÇA encerra em si mesma a sua importância. Para nosso propósito aqui, do latim “securus”, tem o sentido da ausência da preocupação (temor, medo) de que algo ruim possa acontecer. Está seguro (portanto sente-se protegido), quem tem a “sensação” de que tudo está bem, não se aventando a possibilidade de ser agredido, atacado, incomodado. É a partir desse sentimento que se forma a desejada, clamada e esperada “SENSAÇÃO DE SEGURANÇA”.

Na vida em sociedade, o fator SEGURANÇA proporciona condições para que se preveja o futuro. Quanto menor o risco de que algo ruim possa acontecer, maior a “SENSAÇÃO DE SEGURANÇA”. Por outro lado (em seu oposto), qualquer fato (acontecimento, situação) que comprometa, que ponha em risco a possibilidade de realização plena do futuro planejado, se constitui, na já conhecida dos brasileiros em geral, “SENSAÇÃO DE INSEGURANÇA”.

No planejamento estratégico situacional, na análise prospectiva para a construção de cenários, o tempo PASSADO e o tempo FUTURO, apesar das suas importâncias, são apenas referenciais. O que existe, de fato, é o tempo PRESENTE. O tempo PRESENTE hoje, já foi tempo FUTURO, no PASSADO. O tempo FUTURO de amanhã está sendo construído hoje, portanto, no tempo PRESENTE.

A questão da SEGURANÇA, ou mais especificamente, a falta dela HOJE, tem relação com uma sucessão de falhas acontecidas no passado. Decorrente de uma sequência acontecimentos que o sucederam, podemos situar a década de 80 como marco para início do agravamento do problema. Até então, em nosso Estado, as questões relacionadas à violência e criminalidade em relação aos crimes contra o patrimônio, eram pontuais, circunscrevendo-se, nos municípios da Região Metropolitana da Grande Vitória, a algumas poucas localidades.

Por questões históricas, os crimes de homicídio sempre foram muito alto, em especial no interior do Estado, mas não tinham relação com o flagelo de hoje: a questão do narcotráfico. Os homicídios, praticados na modalidade de “pistolagem”, tinham por motivações principais, a questão da posse de terras, as disputas de poder político, e casos de desrespeitos familiares.
Com o crescimento desordenado na Região Metropolitana pós-década de 60/70, com forte reflexo na década de 80, começa a surgir a preocupação em relação aos crimes contra o patrimônio, e com esta, de forma lenta e silenciosa, surge uma modalidade dramática para lidar com o problema: grupos de “justiceiros”, identificados como integrantes do que passou a ser identificado como sendo um “esquadrão da morte”.

Formados, ou com forte participação de policiais, atuando como “representantes” de um “estado paralelo”, assumiam a tarefa de “fazer justiça” com as próprias mãos. Assim, passaram a “eliminar”, a partir de seus julgamentos, os “bandidos”; mas também, como não poderia deixar de ser, os inimigos políticos, os desafetos por qualquer motivo. Ou seja, em nome de “combater” o crime, o praticavam, de forma mais torpe.


No Estado do Espírito Santo, tal modalidade delitiva ganhou destaques no início dos anos 80, com a fundação aqui de uma “filial” da Escuderie Le Cocq. A Le Cocq capixaba ganhou muito “prestígio” e força, até mais que em seu Estado de Origem, o Rio de Janeiro. Teve atuação em terras capixabas por quase duas décadas, sendo colocada na ilegalidade, por decisão judicial, em 2004. Durante sua atuação, contribuiu de forma decisiva para o esgarçamento da estrutura de segurança pública no Estado.

Paralelamente ao conjunto de ações nefastas, perpetradas pelo que ficou conhecido como agentes do “crime organizado” (que contaminavam as agências de segurança pública capixabas e, claro, como um “estado paralelo”, agindo de forma criminosa para “combater o crime”), tem-se o agravamento das ações delitivas, decorrentes da exclusão social.
No abandono social, surge como alternativa para os “fios da meada” desconectados do grande tear, o ingresso no “glamoroso” universo das drogas ilícitas, que começam, na época, a ganhar força. E não para mais. E o poder público, por omissão, por incompreensão, não se dá conta da gravidade.

A realidade que vivenciamos no presente (o HOJE), é fruto, decorre, do que fizemos no passado (o ONTEM). “Colhe-se o que se planta”. Debruçar-se sobre o assunto, trazê-lo para o debate, para a discussão, certamente irá produzir resultados que contribuirão para solução deste grave entrave (que compromete a paz social), desde que, após os debates e as discussões, os caminhos apresentados sejam colocados em prática, sinalizando a partir daí a convicção de que o tema SEGURANÇA, no futuro (AMANHÃ), não venha ocupar tanto destaque como o que recebe hoje. Explica-se.

SEGURANÇA é como o ar que respiramos. Ambos têm relação com VIDA. Os dois constituem elementos determinantes para que um ser vivo permaneça como tal. Um ser vivo respira desde o momento da sua concepção, mas nem por isso precisa ficar pensando o tempo todo que está respirando. Assim é a SEGURANÇA. Ela existindo, não se necessita ficar pensando nela. Claro que, como o ar, ela precisa ser cuidada, protegida, receber atenção, mas não é necessário ficar pensando o tempo todo nela. Se isso acontece, tem-se o sentimento da sua ausência, a indesejável e incomoda “SENSAÇÃO DE INSEGURANÇA”. Aí, a condição de VIDA está comprometida.

A humanidade, ao longo da sua existência vem se defrontando com ações (transformações), produzidas de forma veementes, impetuosas, brutas. Ou seja, violentas. As transformações com violência podem ser produzidas por força da natureza (maremotos, terremotos, furacões, etc.), ou por ação humana (guerras, revoluções, torturas, conflitos sociais, roubos, furtos, homicídios, etc.).
A violência decorrente da ação da natureza é imprevisível ou de difícil previsibilidade, e, portanto, incontrolável ou de difícil controle.

Por sua vez, a violência produzida por ação humana, objeto de atenção da sequência de artigos que estamos escrevendo, é previsível, e, portanto, passível de ser controlada. Se assim não fosse, a humanidade já teria sido extinta do planeta terra (ameaças neste sentido já existiram, por exemplo, no auge da “Guerra Fria” envolvendo as duas “superpotências” de então e seus artefatos nucleares), tal a gama de conflitos violentos em que se envolveu (e ainda hoje se envolve). Entretanto, felizmente, os conflitos sempre são resolvidos, ou, se o conflito é atual, se está em busca de solução para ele, a qual, mais uma vez, com certeza será encontrada.

No ensaio “Ética e violência”, Marilena Chauí diz que violentar é “desnaturar, coagir, constranger, torturar, brutalizar, transgredir”. Neste sentido, ela define violência como sendo: “brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror”.
O descontrole, o desregramento, os desrespeitos vivenciados nas relações sociais geram conflitos (atritos, agressões, desentendimentos). A potencialização, a exacerbação, as maximizações destes conflitos têm como resultado certo (previsível) a VIOLÊNCIA.

A ocorrência de prática violenta de forma contumaz, desassossega, compromete a paz social, e, quando previsto em lei, se constitui CRIME (no Brasil, se o agente do ato violento for menor de 18 anos de idade, na condição de inimputável, a lei denomina a prática antissocial de ATO INFRACIONAL).
O progresso vivenciado pela sociedade ao longo, principalmente, dos últimos dois séculos, decorrente do avanço econômico, da ciência, da tecnologia, não resultou em melhoria nas relações sociais com a mesma pujança. O déficit em relação a atenção social gestou o preocupante aumento da VIOLÊNCIA que produz CRIMINALIDADE, e por consequência a INSEGURANÇA, fenômeno observado no Brasil como um todo, e no contexto deste, de forma particular, insere-se o Estado do Espírito Santo.

A criminalidade disseminada, perpetrada por ações cada vez mais violentas, desestabiliza, provoca em relação a parte expressiva da sociedade sentimento de medo, pavor, comoção, desespero, raiva, ódio, sede de vingança, ou, na melhor, saudável e mais branda das hipóteses, esperança e sede de justiça. É sobre este contexto, sério, que estamos tratando nessa sequência de artigos documento, o que, como já dissemos, mas não custa repetir, evidencia a sua importância, a sua responsabilidade.
Continuemos, no próximo artigo, contextualizando o assunto. Vamos dar sequência à caminhada pela histórica década de 80.

Advogado, formado em Filosofia,
coronel da Reserva da PMES e
empresário da área de segurança privada
nivaldo@seiinteligencia.com.br