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Violência e criminalidade: Perda do “fio da meada” — Parte 9

Nesse contexto de descompasso social, com o poder público incapaz de cumprir seu papel, surgem, dentro de um processo “natural”, grupos paraestatais (em um primeiro momento bem recebidos pela sociedade) para “dar conta” do problema: os “esquadrões da morte”, os grupos de “extermínio”

Coluna — Café Coado, com José Nivaldo Campos Vieira

Na sequência de artigos publicados, temos como objetivo tentar traçar os caminhos percorridos, ao longo das seis últimas décadas, nas quais foram “delineadas”, de forma lenta e gradual, as condições que propiciaram chegar na gravíssima crise hoje vivenciada pela sociedade brasileira, em relação à violência e à criminalidade.
A elevação da violência e da criminalidade se constituiu um fenômeno mundial, e atingiu o nosso Continente como um todo. Mas, de modo mais gravoso, fez (e faz) estragos no Brasil e, de forma persistente, resiste em dar sinais de melhoras… E, acredito, as dificuldades persistirão, enquanto não tivermos uma política pública adequada, com foco claro na causa, e não no efeito…

Seja em qualquer espaço geográfico, sempre haverá aspectos e fatores locais e regionais que, aliados às condições sociais, políticas e econômicas, produzirão violências decorrentes de ações delitivas (crimes). O que acontece nesse momento, carrega consigo um fator comum: a disseminação em larga escala de substâncias que, segundo definição da Anvisa, podem “determinar dependência física ou psíquica”. Ou seja, as substâncias “entorpecentes”, popularmente conhecidas como “DROGAS”.

As “DROGAS” constituem, hoje, um flagelo global. Em torno do narcotráfico se constituiu a macrocriminalidade. No caso brasileiro, ilícitos antes circunscritos a determinadas localidades (em especial as áreas urbanas) se alastraram pelos Estados, avançaram nas divisas destes, ganharam feições regionais, até atingir dimensão nacional e internacional, como é o caso do PCC.

Enfim, crimes transnacionais, envolvendo cifras astronômicas. DROGAS, produzidas em centenas, milhares de toneladas, são consumidas em gramas, depois de adquiridas diretamente nas popularmente conhecidas “bocas de fumo”, pela internet, ou mesmo recebidas em casa pelo sistema de “delivery”.
Drogas como o “crack”, criaram um neologismo em relação ao seu local de consumo: as “cracolândias”, locais onde se amontoam os usuários da substância, a céu aberto, a vista de todos nós, sem nenhuma (ou se alguma, ineficaz) ação do poder público, que se mostra impotente para lidar com a questão.

O poder público tem sido incapaz de cumprir seu papel e as cracolândias têm escancarado os ‘fios da meada’ desprendidos (Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo)

Dependentes de “crack”. Farrapos humanos, muitos jovens, mulheres grávidas… Representam eles, os milhares de “fios da meada” desprendidos do imenso “tear” social. Sem meias-palavras. Um problema social gravíssimo, um flagelo… que não será resolvido com a política do “MAIS do MESMO” (POLÍCIA, JUSTIÇA, PRESÍDIO). Não mesmo.
E, onde se situa o Estado do Espírito Santo nesse contexto? Bem, o fenômeno da explosão do narcotráfico começou a ganhar dimensão preocupante na década de 80. Nesse período, em nosso Continente, já se destacavam os países andinos (Peru, Colômbia e Bolívia) como os responsáveis pela produção de quase toda cocaína consumida no mundo. Por sua posição geográfica, o Brasil, de forma natural, passou a ser rota para o trânsito das drogas entre produtores e consumidores (em especial, países europeus e os EUA).

Com a droga transitando “livremente” em terras brasileiras, de forma muito fácil, parte da produção começou a ser fornecida para consumo local. Aqui, em nosso Estado, as DROGAS passam a servir como “combustível” para aumentar ainda mais a já existente crise social, decorrente, como já falamos, da imigração em massa do campo para a cidade (erradicação do café, década de 60).

Um terço das moradias no País tem esgoto a céu aberto. São 15 bilhões de litros de esgoto sem tratamento despejados todos os dias na natureza (Foto: Instituto Trata Brasil)

Os mercadores de drogas encontraram aqui seres humanos, “fios das meadas” desprendidos do grande “tear” social que, por suas condições de vida (desempregados ou subempregados, habitando áreas inóspitas, moradias improvisadas, esgoto a céu aberto, sem escolas, sem perspectiva de vida digna…), puderam ser facilmente “recrutados” para o exercício das diversas funções no efervescente “negócio” do narcotráfico.
Essa situação começa a afetar, de forma significativa, o comportamento da parcela mais jovem da sociedade, então na condição de “fios da meada” desconectados do grande “tear” social. Começa a produzir, a partir da exclusão social, o sentimento de perda de valores familiares, de dignidade; descaso e desrespeito às leis; aumento exponencial em relação ao uso/abuso das drogas, fator que estimula e influencia a prática de outros delitos, em especial os crimes contra o patrimônio, uma vez que os usuários de drogas precisam de dinheiro para adquirir o produto.

Aumento da procura, abre espaços para organização e aumento da oferta, a irrevogável lei “da oferta e da procura”. Começa a surgir a figura dos fornecedores em escala, os “traficantes”, que criam suas próprias “leis” para defender e fazer crescer seus “negócios”, e que, não incomum, decidem pela eliminação de concorrentes ou mesmo pessoas que estejam “atrapalhando” sua “atividade”.

Segmentos paraestatais, de forma criminosa, se organizam para praticar crimes como o PCC, por exemplo (Foto: Reuters)

Nesse contexto de descompasso social, com o poder público incapaz de cumprir seu papel, surgem, dentro de um processo “natural”, grupos paraestatais (em um primeiro momento bem recebidos pela sociedade) para “dar conta” do problema: os “esquadrões da morte”, os grupos de “extermínio”. Como já dito, segmentos paraestatais, de forma criminosa, se organizam para “combater o crime”.
Mudança brusca da matriz econômica, sem qualquer planejamento; produção em massa de excluídos sociais (“fios das meadas” desprendidos do “tear social”); surgimento da “opção” pelas DROGAS; surgimento de grupos paraestatais para fazer frente ao aumento da criminalidade, praticando crimes: Não poderia dar certo… Não deu.

Também marcante, no contexto histórico da década de 80, o surgimento de fatores políticos. O processo de abertura política se fortalece a partir do final da década de 70, e se consolida em 1985, com a eleição de Tancredo Neves para Presidente, que morre, e é substituído pelo seu Vice-Presidente, José Sarney. A eleição, e posterior posse de Sarney, assinala o fim do regime militar.
Ainda na sequência de fatos políticos marcantes, em 1982 temos a retomada das eleições diretas para governadores; e, em 1986, juntamente com as eleições gerais para escolha dos parlamentares, foi concedido aos parlamentares então eleitos o poder de elaborar uma nova Constituição. Dessa forma, em fevereiro de 1987 é instalada a Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela elaboração da nossa atual Carta Magna, promulgada em 05 de outubro de 1988.
Os ares de liberdade, de normalidade político-institucional advindo do fim do regime militar, não contribuíram para minorar o avanço da violência e da criminalidade. Lamentavelmente, ao contrário, por questões político-ideológicas, produziram efeito contrário e, assim, fomentaram, ainda mais, o já conturbado quadro que se desenhava.

Naquele momento, visões alicerçadas em estigmas proporcionaram condições para que a questão da proteção da sociedade fosse secundarizada e tratada como assunto periférico aos interesses maiores. Assunto segregado para ser tratado como caso de “polícia” (cuja estrutura organizacional avançou muito pouco no Brasil nos últimos dois séculos, mantendo-se, ainda hoje, quase incólume o seu modelo de 1809), a questão da SEGURANÇA PÚBLICA foi secundarizada pelos constituintes de 1988. Naquele momento político, os parlamentares constituintes representavam o pensamento preponderante na sociedade brasileira. Questões de ordem político-ideológica, como já mencionado, fizeram com que o tema “segurança” fosse confundido com “repressão”, ou mesmo a manutenção do “aparelho repressor”.
O assunto SEGURANÇA PÚBLICA, que nunca mereceu destaque, importância, ou mesmo menção em textos constitucionais anteriores, é tratado na Constituição Brasileira de 1988 na forma de um “flash”. Ele está “curiosamente” posicionado em local totalmente inadequado. É tratado no artigo único (o 144), no último Capítulo (o terceiro), do Título V; título este destinado a cuidar “Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas”.

Ou seja, na longuíssima Carta de 1988, o complexo e intrincado tema SEGURANÇA PÚBLICA é tratado em um único artigo. Apenas como comparação, podemos mencionar as “Disposições Constitucionais Transitórias”, que fazem parte do Título X do texto Constitucional. Elas mereceram bem mais destaque. Foram-lhes destinados 97 longos artigos, seguidos de infindáveis incisos, parágrafos e alíneas.
Em toda a Constituição de 1988 a expressão “SEGURANÇA PÚBLICA” foi mencionada apenas três vezes, todas dentro do já citado Artigo 144.
A expressão “DEFESA SOCIAL” (portando, proteção da sociedade, e não do “Estado” ou das “Instituições Democráticas”) não mereceu uma única citação sequer. Outro aspecto interessante da Carta Constitucional Brasileira é a menção a direito(s). Neste campo, a sociedade foi brindada com 163 inserções. Muito menor destaque recebeu a menção a dever(es). A estes foram destinadas apenas 43 menções. Claro desequilíbrio em nome da “liberdade”. Bem mais “direito(s)” que “dever(es)”.

Nessa sequência de artigos, pretendemos refletir o tema SEGURANÇA PÚBLICA com a importância que ele merece: com profundidade e relevância. Trata-se aqui de elementos imprescindíveis para a existência humana: A paz social, o bem-estar social, a convivência social de forma harmônica, desejada, e mais que desejada, necessária.
Está se tratando de vida humana, da possibilidade de nascer e continuar vivendo, seguindo o ciclo natural. Trata-se da total impossibilidade de se concordar, de se aceitar que, se embora por inação, a sociedade brasileira (e a capixaba em especial), tenha chegado hoje ao estado de “barbárie” no campo da violência e da criminalidade, nele, definitivamente não se pode permanecer.
Como já mencionamos anteriormente, não se busca aqui culpado (ou culpados), responsável (ou responsáveis). O tema SEGURANÇA PÚBLICA não é assunto novo, e é, necessariamente, direito e dever de todos, indistintamente — governos e sociedade, no seu conjunto.
Desde o homem da idade da pedra lascada (que buscou a caverna para se proteger do frio e dos animais); do domínio do fogo (que aquece e proporciona condições para cozimento dos alimentos); passando pelo simbolismo da teologia cristã, evidenciado no crime praticado por Caim contra seu irmão Abel (representação da violência, evidenciando o primeiro fratricídio, registrado na história decorrente do “pecado” da inveja); pelas inúmeras guerras registradas ao longo da história da humanidade (e aqui, para contextualizar, com todas as suas complexidades, podemos mencionar a guerra que acontece no Leste Europeu, envolvendo a Rússia e a Ucrânia); pelas “inquisições”; até o ser humano brasileiro que está sendo assassinado no momento em que se escreve (ou se lê) este artigo… a questão da violência, da criminalidade, e a consequente necessidade de ser proteger, sempre se fez presente. E continuará. Não há alternativa.

Na sequência de artigos, caminhamos até a histórica década de 80, apoiado na historiográfica, na busca de fundamentos que consigam fazer compreender as causas do aumento perverso e constante da violência e da criminalidade no Brasil, e em especial no Estado do Espírito Santo. Tem-se por objetivo, a partir dessa compreensão, identificados fatores indicados como causas, vislumbrar-se ações, de modo a estabelecer o necessário para seu controle de controle da violência e da criminalidade, na busca da PAZ SOCIAL.
Continuamos no próximo artigo. Vamos, nele, caminhar pela década de 90. Paradoxalmente ao que se poderia esperar, depois do processo de abertura política, foi um período social, política e economicamente muito conturbado para o Estado do Espírito Santo.

José Nivaldo Campos Vieira
Advogado, formado em Filosofia,
coronel da Reserva da PMES e
empresário da área de segurança privada
nivaldo@seiinteligencia.com.br

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