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Violência e criminalidade: Perda do “fio da meada” — Parte 11

Com centenas, milhares de “fios das meadas” desprendidos do “tear” social disponíveis para “pronto emprego”, o mundo do crime se organizou, se profissionalizou, e se apresenta, quotidianamente, como opção única para uma parcela significativa do segmento jovem da sociedade

Coluna — Café Coado, com José Nivaldo Campos Vieira

Há uma parábola, antiga, muito interessante, comumente utilizada em cursos para formação de lideranças. Objetiva chamar a atenção em relação à acomodação e aos malefícios desta decorrentes. É a parábola do sapo escaldado. Em síntese, ela diz que, se colocarmos um sapo em uma panela de água fria, e lentamente aumentarmos a temperatura, ele não reagirá. Se acomoda… e se a água continuar sendo aquecida, até chegar ao estado de fervura, será tarde demais. Ele, acomodado, inerte, vai morrer cozido.

No Brasil, em geral e, no contexto do País, no Estado do Espírito Santo, nos últimos 50 anos, de forma lenta e gradualmente, vimos o crescimento da violência e da criminalidade. Como sapos, acomodados no conforto da nossa “panela”, não percebemos o aumento da “temperatura”. Hoje, muito aquecida, se não tomarmos consciência, atingirá o ponto de “fervura”.

No artigo, anterior falamos do agravamento da violência e da criminalidade nos anos 90. Com uso do “remédio” inadequado para lidar com a questão, ou seja, a prevalência, a preponderância de ações no campo da política CRIMINAL (que atua sobre as consequências), em detrimento das necessárias ações no campo SOCIAL (que atua sobre as causas), o quadro, que já estava muito complicado com o agravamento em decorrência do aumento considerável do tráfico de entorpecentes, piorou ainda mais.
Assim, a política do MAIS do MESMO (Mais POLÍCIA, Mais JUSTIÇA CRIMINAL, Mais PRISÃO), além de não conseguir dar conta do problema (a violência continuou aumentando), potencializou ainda mais outra situação: aumento exponencial da população carcerária. Como mencionamos em artigos anteriores, era gritante a elevação do número de presos.

Exemplo cristalino dessa triste realidade. Trabalhei na Secretaria de Justiça do ES durante quase três anos. Quando ingressei, no mês de junho de 2000, a população carcerária do ES girava em torno de 1.700 pessoas, recolhida no “inexistente” sistema prisional Capixaba (não existiam presídios… O que tínhamos eram “escombros” de prédios, denominados em matérias jornalísticas como “masmorras”…). Quando saí, no início de 2003, já eram cerca de 4.300 presos. Ou seja, elevação de mais de 150% em apenas dois anos e meio. Bem, se verificarmos a população carcerária de nosso Estado hoje, em torno de 23.000, vamos observar que ela cresceu mais de 13 vezes, ou seja incremento de mais de 1300% em pouco mais de duas décadas. Bem, e qual foi o aumento da população no período? Pouco mais de 30%.

Os números, embora frios, evidenciam a triste realidade em relação ao fenômeno da violência e da criminalidade em nosso Estado, e da tentativa (infrutífera) de solução para ele adotada: o aprisionamento, reflexo do que acontece, com algumas variáveis (com algumas circunstâncias atenuantes, outras agravantes), nos demais Estados e no Distrito Federal. Pessoas jovens, ainda muito jovens, “fios das meadas” desprendidos do grande “tear” que constrói o tecido social, vivendo à margem da sociedade, desprovidas de valores (em especial os relacionados à família e à religião), têm como opção única o “mundo” do crime.

Com centenas, milhares de “fios das meadas” desprendidos do “tear” social disponíveis para “pronto emprego”, o mundo do crime se organizou, se profissionalizou, e se apresenta, quotidianamente, como opção única para uma parcela significativa do segmento jovem da sociedade. São inúmeras as “organizações criminosas” Brasil afora, com destaque para o multinacional PCC. E não lhes faltam “mão de obra” (“soldados”, seguidores, membros dedicados) para dar efetividade às suas atividades delitivas.

Voltemos à nossa preocupação com a descomunal elevação da população carcerária brasileira, e vamos observar quais foram (e estão sendo) as ações para lidar com ela. No cerne da questão, o tema foi tratado de maneira “desfocada”. Passou-se a buscar a “culpa” (no sentido de que a “culpa” é do “outro”) na legislação penal, com o argumento (errôneo, ou ao menos incompleto, inconsistente) de que ela era muito “severa”. A partir desse conceito, na tentativa de redução da população carcerária, passou-se a adotar uma série de procedimentos, com modificações na legislação vigente em nosso País.

Nas modificações, algumas delas importantes como, por exemplo, a alteração do Código Penal, pela Lei nº 9.714/98, que estabelece a opção de aplicação de penas alternativas, consistindo na adoção de sanções mais brandas, que substituem às de privações de liberdade, no caso de delitos de menor potencial ofensivo. Há outras controversas, como determinadas alterações feitas na Lei nº 7.210/84, que trata da Execução Penal (LEP); ou ainda, a implementação das “audiências de custódia”.

A LEP passou a vigorar em 1984, e desde então sofreu 21 alterações. São muitas, especialmente se observarmos que as alterações começaram a acontecer em 1995, ou seja, no início da segunda metade da década de 90 (detalhe para o ano).

Alguns beneficiados pela “saidinha” aproveitam a oportunidade para praticar crimes, ou mesmo, não retornam ao presídio para dar continuidade ao cumprimento da pena (Foto: Akira Onuma/Ascom Susipe)

As alterações da Lei de Execução Penal refletem posições controversas no seio da sociedade. Há entendimento, no sentido de que elas foram feitas para “beneficiar” os presos como, por exemplo, as alterações feitas com o objetivo de redução do tempo para cumprimento das penas em regime fechado, facilitando a progressão para cumprimento das penas em regimes mais brandos, como o semiaberto e o aberto. Há ainda, no campo das controvérsias, as alterações que criaram direitos às “saídas temporárias” (conhecidas de forma pejorativa como “saidinhas”) em datas comemorativas (Natal e Ano Novo, Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Finados) ou mesmo para estudar. A críticas decorrem de situações em que, alguns beneficiados pela “saidinha” aproveitam a oportunidade para praticar crimes, ou mesmo, não retornam ao presídio para dar continuidade ao cumprimento da pena.

Alimentando ainda mais a controvérsia, há situações de concessão do direito à “saidinha” para pessoas que praticaram crimes torpes, e de grande repercussão nacional, como o da jovem que, em 2002, planejou o assassinato dos pais e foi condenada a 39 anos de prisão; o caso de esposa, condenada a 16 anos de prisão pela morte e esquartejamento do marido; ou ainda a concessão do direito ao pai, condenado a 30 anos de prisão pela morte da filha de cinco anos. Ainda na linha de redução da população carcerária, a partir de 2015, passou a ser adotado o procedimento de “audiência de custódia”. Ela consiste na obrigação de que, quando da prisão em flagrante, ou em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, no prazo de 24 horas após a prisão, a pessoa privada de liberdade deve ser apresentada a autoridade judicial, para que este decida a respeito da legalidade/necessidade da prisão. Tal procedimento insere-se no campo das controvérsias, com muitas críticas.

Depois dessa breve contextualização relacionadas à tentativa de redução da população carcerária, o foco na política do “desencarceramento”, vamos caminhar em nossas reflexões, e a partir delas, verificar uma triste constatação: não obtiveram o êxito deseja. E por quê?
Na busca de solução de um problema, com foco na criação de um plano de ação, há caminho interessante. Para trilhá-lo, é preciso identificar o problema, bem como, as variáveis em torno dele. Uma das “ferramentas” é o conhecido método “5W2H”, cujas letras, na língua inglesa, identificam indagações a serem respondidas, e a partir daí, trabalhar na busca de solução.

Sem aprofundar, o que seria inadequado para um artigo como o que escrevemos, vamos nos ater a duas importantes perguntas propostas no método “5W2H”. Vamos nos fixar nos dois primeiros Ws, que, se respondidos corretamente, permitirá seguir caminhando pelos outros três Ws (importantes), para, ao final, encontrar uma solução, lá nos dois Hs.
A primeira pergunta identifica o problema (What? / O quê?). Vejamos…
Desde o nosso 1º artigo, até chegarmos nesse 11º, temos como foco tentar compreender o crescimento do fenômeno da violência e a criminalidade no Brasil, e de forma particular, no Estado do Espírito Santo. Dissemos, várias vezes, que o caminho, o qual denominamos de MAIS do MESMO, focado preponderantemente na política criminal (MAIS polícia; MAIS justiça criminal; MAIS prisão) atuava (e atua) sobre o efeito. Vejamos, como já disse algumas vezes, os operadores do direito (polícia, justiça criminal e sistema prisional) são importantíssimos, necessários, imprescindíveis. Mas, sozinhos, não conseguem dar conta do problema. Bem, não conseguiram…

Dessa forma, a violência e a criminalidade continuaram aumentando, e, para complicar ainda mais a situação, a ação forte da política do MAIS do MESMO, gerou um outro problema. Aumento descomunal da população carcerária. Eis aqui o nosso PROBLEMA, foco desse artigo. O nosso O QUE?
A segunda pergunta busca identificar quem está causando o problema (When? / Quem?). Continuemos…
Em um primeiro momento a resposta pareceu simples…. Ora, disseram os mais apressados… claro, evidente, a CULPA (sempre tem que ter um culpado) do aumento da população carcerária é do pessoal do MAIS do MESMO… a polícia prende MUITO, a justiça criminal condena MUITO; e por esse motivo os presídios estão abarrotados.

A aproximação das polícias com a comunidade é importante e o Estado do Espírito Santo é uma referência nacional (Foto: Ascom PMES)

Partindo dessa (falsa) premissa, começou a ser criada uma (falsa) visão no sentido de que: (i) a legislação penal era “excessivamente severa”… (ii) as policias “gostavam” de prender… (iii) a justiça criminal “gostava” de condenar…
“Eureka”!!! Bradaram os “Arquimedes” dos tempos modernos. Temos a solução para o problema: Flexibilizar a legislação penal e criar mecanismos que também flexibilizassem a execução penal (como já falamos acima, a redução do tempo para cumprimento de pena, as “saidinhas”, audiência de custódia).
Não se discute (é evidente) a necessidade de se reduzir o nível de encarceramento no Brasil. Mas, a ação nesse sentido deve focar o real vetor CAUSA, que, nem de longe, se encontra na legislação penal, ou nos operadores do direito nesse seguimento (que atuam no EFEITO). Assim, em sentido oposto ao pretendido, a flexibilização pura e simples, pode (e vem demonstrando) um efeito inverso. Vejamos…
Se continuarmos produzindo, às centenas, aos milhares, “fios da meada” desprendidos do grande “tear” social, e continuarmos os abandonando ao limbo da estrutura social (como, por exemplo, as “cracolândias” espalhadas pelo Brasil afora), essa imensidão de pessoas continuarão caminhando ao encontro das alternativas que lhe são disponíveis, de regra, as que a elas são apresentadas pelo mundo do crime.

Se não adotarmos uma ação efetiva e abrangente sobre o fator CAUSA (política continua de INSERÇÃO SOCIAL), a adoção, pura e simples, da política de flexibilização (abrandamento) da legislação penal, bem como, a de sua execução, pode (e está) funcionar como um “estímulo” a prática delitiva. Parece loucura. Mas pode funcionar como algo no sentido de que: “o crime compensa”…
Há fatores, de ordem psicológica, que são determinantes para que eu decida fazer (ou deixar de fazer) algo: o INTERESSE (me é atrativo, me atrai, desejo…) ou a NECESSIDADE (preciso, careço, me é essencial). Como seres humanos, os “fios da meada” desprendidos do enorme “tear social”, vivendo à margem da sociedade… os têm.
Caminhando em direção ao fazer (ou ao deixar de fazer), e aqui vamos colocar o componente da prática “ilícita” (algo errado, contrário a ordem social, punível…), surgem dois outros componentes, também de ordem psicológica, muitos importantes, que estão ligados à possibilidade do sucesso em relação a realização da ação pretendida: as sensações de oportunidade (a ocasião me é favorável???), e a de impunidade (vou se apenado, responsabilizado, vou pagar pelo ato ilícito que pretendo praticar???).

PCC: em 2018, 97 presos brasileiros foram extraditados do Paraguai (Foto: Andressa Anholete/AFP)

Sim, nas relações sociais, a flexibilização, o afrouxamento puro e simples, do importantíssimo alicerce definidor, em relação às práticas ilícitas existentes, para alcançarem aqueles que descumprem, pode (e provoca) sensação de IMPUNIDADE. O que não é bom.
Situação difícil. Precisamos FOCAR, prioritariamente, no fator CAUSA. Reinserir, na feitura do tecido social, as centenas, milhares de “fios da meada” deles desprendidos.
No rol das possibilidades, a ideia de “comunitarização” das agências operadoras da segurança pública, constitui um passo importante. Consiste em algo relativamente simples: a aproximação das polícias com a comunidade. Tema antigo, que desde o Século XIX vem sendo colocada em prática, com sucesso, em Países como Inglaterra e Japão, e que vem sendo estudado e empregado em alguns locais no Brasil, e, importante, o Estado do Espírito Santo é uma referência nacional.

Estamos no começo. Precisa ser ampliado para outros segmentos. Não obstante seja evidente o pressuposto de uma relação necessária entre as agencias operadoras da segurança pública e a sociedade, ela não ocorre com a dimensão e intensidade desejada.
Há luz no fim do túnel? SIM. Embora ainda tênue, a perspectiva de integração polícia/comunidade, trouxe (e mantem) a esperança. Sim, há esperança. No próximo artigo, o 12º, o último da sequência do que nos propomos apresentar, vamos chegar à finalização da nossa linha de raciocínio, com uma proposta objetiva.
Quem sabe.

José Nivaldo Campos Vieira
Advogado, formado em Filosofia,
coronel da Reserva da PMES e
empresário da área de segurança privada
nivaldo@seiinteligencia.com.br
Luzimara Fernandes

Luzimara Fernandes

Jornalista MTB 2358-ES

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