Violência e criminalidade: Perda do “fio da meada” — Parte 12 (Final)

Coluna — Café Coado, com José Nivaldo Campos Vieira

Iniciamos essa série de artigos com objetivo de tentar percorrer (e compreender) o caminho que nos fez chegar à realidade atual, em relação ao fenômeno da violência e da criminalidade. Iniciamos, com nosso primeiro artigo (Parte 1), fazendo uma analogia com o surgimento das grandes máquinas de tecer.
Ao longo da história, inconteste a busca do ser humano no sentido de usar de algum material para cobrir seu corpo, seja por necessidade proteção, seja por questão estética (adorno, vaidade). Nesse contexto, surge um segmento de negócio altamente promissor: a indústria têxtil.

Com o advento da Revolução Industrial, em meado do Século XIX, aparecem as primeiras grandes máquinas de tear automatizadas (movidas a vapor), usadas para a produção de tecidos de algodão e de lã. As máquinas eram dotadas de suportes para os rolos de fios, as meadas, e para que o equipamento funcionasse, atingisse seu objetivo, que era produzir tecidos, de boa qualidade, necessitava que todos os fios participassem da confecção.
Quando um ou mais fios se partia, se desligavam da engrenagem que fabricava o tecido, a máquina tinha que ser parada, e o fio, ou os fios partidos, precisavam ser reconectados para que a máquina voltasse a funcionar corretamente. Caso contrário, se os fios não fossem reconectados, alguns fios ficariam “perdidos”, fazendo com que o tecido saísse defeituoso. Surge assim a expressão ainda hoje popular: “perder o fio da meada”. Nessa linha de raciocínio, fizemos uma analogia entre o fato histórico acima e o fenômeno da violência e criminalidade.

Ao longo dos artigos, tentamos mostrar que décadas após décadas, o fenômeno violência e criminalidade veio aumentando em nosso País, não obstantes todas as tentativas dos governos diversos para lidar com a questão. Principal “remédio” aplicado: Utilização do que chamo de política de “MAIS do MESMO” (MAIS polícia… MAIS justiça criminal…. MAIS prisão). Embora, como por diversas vezes destaquei, constituam segmentos importantíssimos para lidar com a questão, sozinhos, não conseguiram (e não conseguirão) produzir o resultado desejado. Razão simples: atuação preponderante em relação aos EFEITOS.
Conforme mencionei no artigo anterior, surge luz no fim do túnel. Há sim, possibilidade de lidar com a questão, de forma ampla, a partir de suas CAUSAS.
Constituídas para lidar com os conflitos sociais, os operadores da segurança pública, já, de início, por sua razão de existir, possuem a rejeição de uma parcela da sociedade: aquela que pratica crimes. Por questões evidenciadas a partir de um raciocínio logico, as pessoas que orbitam no mundo do crime, por razões obvias, não irão gostar (apoiar, estimular, incentivar…) as polícias. É assim, e sempre será assim.

Entretanto, em nosso País, historicamente, os agentes que operam na área de segurança pública, que já possuem seus “desafetos” naturais, também se mantêm distantes do conjunto da sociedade. Há evidências exemplificativas que clareiam tal argumentação. Por exemplo, as construções de quarteis das polícias militares no topo de elevações, como verdadeiros “castelos medievais”, cujo acesso, a partir do “corpo da guarda”, deixa claro a separação polícia x sociedade.
O distanciamento se dá também no quotidiano. De regra, o contato ocorre apenas quando no atendimento a alguma “ocorrência”, onde nem sempre a atuação do policial vai conseguir (por fatores diversos, muitas vezes alheios a vontade do policial) atender aos anseios do cidadão-vítima.

Há um modelo de policiamento aplicado há quase dois séculos na Inglaterra (1829) e no Japão (1879), que resolve (ou ao menos minimizar) a questão do “distanciamento” polícia/sociedade. Trata-se do modelo identificado como sendo POLICIAMENTO COMUNITÁRIO. De forma simples, significa a proximidade entre os integrantes das organizações policiais e a comunidade, tendo por objetivo eliminar barreiras, proporcionar integração, compreensão, cooperação, colaboração, e, segundo a ONU (que abordou o assunto na Resolução nº 34/169, de 17/12/1979), proporcionar “representatividade, responsabilidade e responsividade”.

No Brasil, nos anos 80 começou a ser pensado a adoção desse modelo de policiamento, havendo aqui um aspecto interessante. Foi no Estado do Espírito Santo, mais especificamente no Município de Guaçuí, em 1988, que ele começou a ser colocado em prática, tendo recebido a denominação de POLÍCIA INTERATIVA. Com a experiência exitosa em nosso Estado, a partir da década de 90 a nova modalidade de policiamento (usando a denominação original de “polícia comunitária”, ou mesmo a de “polícia interativa”, criada no ES), começou a ser adotada, ainda com bastante “desconfiança” entre os atores diretamente envolvidos — policiais e sociedade. E, de forma ainda lenta, mas insistente, vem caminhando. Em um País de dimensão continental como o Brasil, é muito difícil mudar cultura consolidada por muitas décadas, principalmente se levarmos em consideração contextos políticos nos quais as organizações policiais se viram envolvidas.

No final dos anos 90, mais uma vez o Estado do Espírito Santo se destaca na área de proposições de ações em relação à questão da violência e criminalidade. Depois de longo estudo, e de forma inédita, em nosso Estado foi dado um passo importante, para que, pela primeira vez no Brasil a questão da violência e da criminalidade pudesse ser abordada a partir de uma visão holística.
Fruto da ação conjunta de um grupo de profissionais da área de segurança pública e de outras áreas afins, cuja dedicação se deu de forma voluntária, o estudo foi consolidado em um conjunto de ações que recebeu a denominação de Programa de Planejamento de Ações de Segurança Pública, amplamente conhecido na sociedade pela sigla PRO-PAS.

Construído de forma meticulosa, o Programa consistiu de um conjunto de oito projetos, que se desdobram em diversos subprojetos, formando uma consistente política pública de defesa social (segurança pública). Sustenta-se na visão de integração entre as forças policiais, e destas, com as comunidades, e sua execução lastreia-se em um planejamento estratégico prospectivo, com previsão de ações imediatas, bem como, de curto, médio e longo prazos.
Os seguintes projetos estruturaram o PRO-PAS: (1) Projeto de ações impactantes com medidas imediatas; (2) Projeto de reestruturação dos órgãos de defesa social; (3) Projeto de construção de indicadores de segurança pública; (4) Projeto de unificação do ensino e instrução dos órgãos de defesa social; (5) Projeto de integração das comunicações dos órgãos de defesa social; (6) Projeto de integração dos órgãos corregedores das polícias; (7) Projeto de interfaces “societais” e institucionais; e, (8) Projeto a gente de paz.



Dificuldades de ordem política impediram a continuidade na implantação dos projetos, mas os que conseguiram caminhar, hoje, de forma objetiva, contribuem muito para as ações de defesa social (segurança pública), como por exemplo, a criação do Centro Integrado de Operações e Defesa Social, muito conhecido pela sociedade pela sua sigla CIODES, que fez parte do Projeto 5; ou ainda, o DISQUE DENÚNCIA, que fez parte do Projeto 7.
A sequência de artigos que escrevi, tem o propósito de contribuir com a definição de uma Política que foque a questão da defesa social (segurança pública), sendo entendida como decorrente de conflitos sociais, e como tal, tanto os que praticam delitos (agressores), como os que sofrem com a prática destes (agredidos) são atores de um grande teatro que forma o tecido social de nosso País, de nosso Estado.

Como já dissemos várias vezes, é um tema recorrente, agravado no Estado do ES a partir da década de 1970, que precisa ser tratado de forma ampla e perene, portanto premente se faz a existência de uma política efetiva e que atente para a estas dimensões do problema.
Violência e criminalidade. Gostemos (ou não), vítimas e vitimizadores, agressores e agredidos, de regra jovens, são brasileiros, gerados nos seios de famílias (ou do que sobrou delas), inexistindo, portanto, “inimigos” a serem “combatidos”. No contexto de uma verdadeira guerra, que resultou na criação e fortalecimento do crime organizado, há, sim, comportamentos agressivos que precisam ser controlados, de maneira firme e exemplar, de forma a se restabelecer a normalidade no convívio social. Nesse sentido, é premente a necessidade de que TODOS, GOVERNOS (União, Estados e Municípios) e SOCIEDADE, se unam, formando uma corrente de “Solidariedade Pela Paz Social”.

No contexto, e na linha do que ficou definido no conjunto de Projetos do PRO-PAS, as ações para lidar com a temática na área da violência e da criminalidade, precisam, de forma imperiosa, ser implementadas de maneira simultânea, nas áreas de (I) PREVENÇÃO: (a) primária, (b) secundária e (c) terciária; na área de (II) TRATAMENTO; na área de (III) CONTENÇÃO; e, na área de (IV) REINSERÇÃO SOCIAL.
O primeiro estágio na área da (I) PREVENÇÃO é o da ação (a) PRIMÁRIA (também denominada de intervenção precoce ou proação). Ele deve ocorre no seio da família, no ambiente educacional, da igreja, da comunidade, onde serão constituídas relações de convivência, de fraternidade, com foco no respeito, nos direitos e nos deveres.

Na sequência, vem a (b) PREVENÇÃO SECUNDÁRIA. Nesta, serão incutidas ações de persuasão e dissuasão. Importantíssima, e muita conhecida em relação a essa ação é o caso do policiamento ostensivo, implementado por policiais fardados, ou, de forma mais moderna, a presença de equipamentos eletrônicos, como as câmeras de segurança. A simples presença dos policiais, ou a existência das câmeras, produz dois efeitos importantes na área da segurança: (1) geram sensação de segurança para as pessoas corretas, aumentando a tranquilidade e o bem-estar destas; e (2) persuadem ou dissuadem as pessoas que, movidas por impulso de interesse ou necessidade, aventam a possibilidade de praticar algum ato ilícito, mas não caminham nessa direção (da pratica da ilicitude), temerosas pela possibilidade de serem “pegas”. A prevenção secundária, com suas ações de persuasão ou dissuasão, retiram (ou ao menos minimizam) a possibilidade de práticas delitivas, quando eliminaram as sensações de oportunidade e impunidade, alicerces para quem quer delinquir.

Na sequência das ações preventivas, também importantes, inserem-se as da (c) PREVENÇÃO TERCIÁRIA. Aplicam-se nesse caso os procedimentos, de cunho educacional, voltados para prover ações de contenção em relação à prática de pequenos delitos. É o caso de envolvimento com drogas ilícitas na fase inicial, ou mesmo determinadas ações que poderiam ser contidas nas audiências de custódias. Nessa situação, como já existe o delito (embora ainda de muito menor potencial ofensivo), no caso das ações aqui sinalizadas, elas, necessariamente, vão requerer algum acompanhamento especializado, sem o qual, haverá forte possibilidade de a pessoa envolvida continuar seguindo o caminho na prática de ilícitos.

A área seguinte, é a de (II) TRATAMENTO. Não obstante todos os esforços empreendidos nas (I) PREVENÇÕES, sempre existirão os que avançarão, com ações mais fortes, que extrapolam por vezes (e por fatores diversos) as suas próprias vontades e/ou desejos de mudanças. Hoje, emblemático, Brasil afora, são os casos das “cracolândias”, ou mesmo, não incomuns, os casos de dependentes químicos (drogas lícitas e/ou ilícitas) convivendo no ambiente familiar. São poucas as famílias que tem condições de cuidar, de prover o tratamento. Há necessidade de uma política, com foco na área de saúde pública, para lidar com tal questão.
Avancemos… Não obstante todas as ações de (I) PREVENÇÕES, e as de (II) TRATAMENTOS, haverá sempre aqueles de insistirão (por motivos diversos, situações que acompanham a própria história da humanidade… inerentes aos seres humanos…) em transgredir, havendo, portanto, a necessidade de (III) CONTENÇÃO. É aqui, NESSE MOMENTO (e não lá no começo de tudo) que entram em cena a necessidade e importância do CONTROLE SOCIAL FORMAL, o estabelecido pela JUSTIÇA CRIMINAL.

Será por intermédio da importantíssima ação dos operadores do direito penal: a POLÍCIA; a JUSTIÇA, e, se necessária, em ÚLTIMA INSTÂNCIA, por decisão judicial, a PRISÃO. Importante esse destaque último, e aqui evidencia-se a importância da tão incompreendida (por muitos) da audiência de custódia, ou mesmo, no caso de condenações, a aplicação de penas não privativas de liberdade. Assuntos controversos, que necessitam ser equacionados no seio da sociedade.
Quando ocorrer necessidade da PRISÃO, da privação de liberdade, ficará evidente que houve falha na sequência de ações possíveis nos campos das (I) PREVENÇÕES e do (II) TRATAMENTO. Mas a preocupação, o problema, não termina com a contenção do transgressor. Inexiste na nossa legislação a pena de prisão perpétua. Em algum momento, o condenado à perda sua liberdade irá retornar ao convívio social. Como o sistema prisional brasileiro devolve o apenado ao convívio social depois dele ter cumprido a sua pena?

A (IV) REINSERÇÃO SOCIAL dos egressos do sistema prisional é tema relevante para uma efetiva política de segurança pública. Lamentavelmente ignorado por todos nós. Trata-se de interesse social coletivo, na sua essência, do conjunto da sociedade. Existe muita incompreensão nesse segmento.
Como vimos, há um caminhar de ações nas quatro áreas, e nelas podemos observar uma relação de CUSTO x BENEFÍCIO amplamente favorável (social, político e econômico) à sociedade em seu conjunto, quando obtenho sucesso nas áreas das PREVENÇÕES: custo é MUITO BAIXO em relação ao BENEFÍCIO alcançado. Essa relação caminha no sentido inverso quando se tem necessidade de avançar. Quando atinjo as áreas da CONTENÇÃO e REINSERÇÃO SOCIAL, a realidade se inverte: o custo é MUITO ALTO (elevadíssimo… social, política e economicamente).

Sem ações CONJUNTAS… Fortes e decisivas, nos campos das PREVENÇÕES, do TRATAMENTO, da CONTENÇÃO e da REINSEREÇÃO SOCIAL, dificilmente teremos resultados efetivos, perenes no campo da DEFESA SOCIAL (SEGURANÇA PÚBLICA).
Encerro, conforme prometido, esse meu último artigo.
Tive a honra de ocupar o espaço dessa Coluna, pertencente a Delegada Gracimeri Gaviorno, em função do seu temporário afastamento, para cumprimento às normas estabelecidas pela Justiça Eleitoral. Sucesso Doutora Gracimeri!

Advogado, formado em Filosofia,
coronel da Reserva da PMES e
empresário da área de segurança privada
nivaldo@seiinteligencia.com.br





