As várias idades na Legislação Brasileira: uma confusão sistêmica da maturidade!
Volta e meia o tema maioridade penal vem à tona no Brasil
Era um dia comum na Divisão de Homicídios, se não fosse por aquele flagrante de ato infracional que traria à minha presença um adolescente acusado de praticar duplo homicídio. O ato de descarregar uma pistola e confessar friamente que matou duas pessoas não o deixava assustado. Mas quando soube que não voltaria para casa naquele dia, exclamou surpreso: “Eu vou ficar preso, doutora? Menor fica preso?”.
É, preso ou internado por medida socioeducativa, o adolescente infrator pode ficar sob custódia do Estado. Na prática, eles ficam iguais aos adultos: presos em uma cela, com a liberdade cerceada. Mas muitos jovens não sabem disso.
Pois bem, vamos falar um pouco disso nesta semana. Aliás, nosso Código Penal está completando 82 anos neste dia 7 de dezembro. Para a sua época, até que foi uma legislação bem inovadora. Entretanto, já há algum tempo vem requerendo uma revisão profunda a fim atender aos anseios sociais. Não estamos falando de reformas pontuais, mas, sim, de uma alteração sistêmica. Os remendos sempre dão muito trabalho aos intérpretes e acabam produzindo uma aplicação bem diferente do que anseia a sociedade.
O artigo 27 do nosso Código Penal diz que os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis e se sujeitam às normas estabelecidas na legislação especial. A legislação especial, nesse caso, é o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA para alguns e Ecriad para outros. Eu, prefiro a segunda abreviação. A matéria está organizada na Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.
Os menores de 18 anos são considerados penalmente inimputáveis, mas isso não significa que os atos infracionais praticados não terão consequências para os infratores. A eles, serão aplicadas as chamadas medidas socioeducativas.
Tanto a pena quanto a medida socioeducativa são consequências jurídicas decorrentes da prática de um ato que lesa um bem protegido pela legislação penal. Assim, se uma pessoa mata outra pessoa, ocorre uma violação do direito à vida, protegido pela Lei Penal. Se essa lesão for praticada por uma pessoa maior de 18 anos, em sua plena faculdade mental e consciência de seus atos, poderá ser condenada à pena privativa de liberdade, neste caso, ao cumprimento de uma prisão por tempo determinado. Se, ao contrário, o autor for um adolescente, que tenha entre 12 e 18 anos, poderá sofrer uma medida, também restritiva de liberdade. Mas, neste caso, denominada medida socioeducativa classificada como internação. A internação é um nome diferente para prisão. Na prática, é isso. Mas o que difere uma da outra, então?
Existem, sim, algumas diferenças entre elas. A pena fixada pelo juiz em uma sentença condenatória, pelo menos aqui no Brasil, tem prazo certo para ser cumprida. Já a internação, enquanto modalidade da medida socioeducativa, conforme o Ecriad, é uma medida privativa de liberdade, mas não se extingue pelo decurso do tempo fixado em sentença e, sim, por “cumprimento de sua finalidade”. É o que diz o artigo 46, da Lei 12.594, de 2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). A finalidade, prevista nessa lei, combina responsabilização, integração social do adolescente e desaprovação da conduta infracional.
Em tese, tem um fundamento mais gravoso que o direito penal comum, a medida que não fixa um tempo certo para a internação. Todavia, o artigo 121 do Ecriad estabelece em três anos o prazo máximo para internação.
Com o triste episódio de violência nas escolas, voltam os debates sobre a maioridade penal no Brasil. Essa é uma das discussões mais acaloradas que envolvem a segurança pública.
O assunto retomou às redes sociais e foi tema dos discursos no Congresso Nacional entre os parlamentares capixabas. Fala-se em rediscutir a maioridade penal. E a reflexão tem até fundamento. Entender a colcha de retalhos das reformas pontuais e não sistêmicas pode nos dar a resposta que queríamos, ou que não queríamos.
Retomar a ideia de um íntegro e coeso sistema legislativo pode corrigir distorções que tornaram incompreensível a hermenêutica, ou seja, a interpretação de um texto. Como explicar o fato de uma mesma pessoa, que tenha entre 16 e 18 anos, possa ter desenvolvido a maturidade para eleger o presidente de um país, mas não para responder por um crime?
Antes do nosso já velho e vigente Código Penal, tínhamos o Código Criminal, de 1830. Nessa época, os menores de 14 anos eram presumidamente inimputáveis. Entre os 14 e 17 anos, poderiam cumprir até ⅔ das penas aplicadas aos adultos. Os que tivessem entre 17 e 21 anos, poderiam ser beneficiados por atenuante da pena.
Esse sistema de responsabilidade progressiva guardava alguma compatibilidade com nossa legislação civil. O contrato de trabalho poderia ser celebrado aos 14 anos de idade. A minha carteira de trabalho, por exemplo, foi assinada, quando eu tinha 15 anos. Mas, hoje, somente após os 18 anos uma pessoa pode ser contratada legalmente para o trabalho. Muito embora, sejam permitidas contratações para trabalhos artísticos. No Código Civil, de 1916, as pessoas com até 16 anos eram consideradas civilmente incapazes; as que tivessem entre 16 e 18 anos eram consideradas parcialmente capazes e a partir de 21 anos eram plenamente capazes.
Com o novo Código Civil, instituído pela Lei 10.406, de 2002, a idade da maioridade civil diminuiu de 21 para 18 anos. E o entendimento recorrente é de que a nova legislação não revogou a possibilidade de aplicação da medida sócio educativa até aos 21 anos, prevista no Ecriad.
Assim, é possível repensar o tempo máximo de medida de internação, inclusive por já se ter pacificado a possiblidade de seu cumprimento para além dos 18 anos de idade. É o que propõe o Projeto de Lei 661/21 ao sugerir dobrar de três para seis anos o prazo máximo para internação de adolescentes que cometem atos infracionais, cumprida até 24 e não mais 21 anos. Na mesma linha segue o Projeto de Lei 1.481/2022 ao estabelecer que a medida de internação para o autor de ato infracional contra a vida possa ter prazo máximo de 12 anos, com critérios de separação de internos por idade.
Penso, no entanto, que precisamos discutir séria e profundamente o que quer a sociedade brasileira. Certamente que queremos medidas de desenvolvimento da infância e adolescência. Não queremos nossos jovens encarcerados. Isso traz severas consequências sociais e econômicas. Mas precisamos ser coerentes em relação à construção ou presunção de uma maturidade responsável. E não podemos mais jogar a poeira para debaixo do tapete. Precisamos enfrentar esta questão de forma profunda, sistêmica e que encontre eco nos clamores sociais.
O momento é propício, acabamos de sair de um processo que elegeu exatamente os atores responsáveis por promover essa reforma. O que não queremos é ter que ouvir as mesmas promessas daqui a quatro anos e, perversamente, proposta pelos mesmos atores que passam 4, 8, 12 ou quase trinta anos no Congresso Nacional. É preciso coragem para fazer uma política séria! Até o próximo Café Coado. E não se esqueça, você poderá mandar sugestões para o e-mail colunacafecoado@gmail.com.