Mobilidade

A relativização do óbvio

Motos respondem por quase metade das mortes no trânsito brasileiro

A geografia humana mostra que o espaço público vai se tornando cada vez menor para acomodar seus usuários. A relação entre população e superfície do território passa a ser uma preocupação constante. As diversidades de estilos de locomoção ocupam nossas ruas, buscam soluções mais razoáveis de mobilidade. Aqui na nossa região metropolitana, investimentos e estudos continuam a privilegiar o transporte individual: carros e “bikes”. Enquanto isso, o trânsito segue em condições congestionadas, com grandes impactos negativos à sociedade. A falta de um “plano diretor de mobilidade urbana”, como determina a Lei, contribui para alguns absurdos cotidianos.
Em tempos de pós-verdade é preciso ousar pensar além das crenças e “certezas duvidosas”, quando o tema tratar sobre deslocamento da população. Precisamos trabalhar com a realidade objetiva. Hoje, geralmente deparamos com algumas sucessões de factoides e improvisos, baseadas em algumas suspeitas ou em algum tipo de intuição estruturante. Habitualmente reparamos isso em algumas ações distorcidas, fragmentadas, incoerentes aos princípios de conectividade, tempestividade, resolutividade e continuidade. Daí, imaginarmos que, não raro, pouco importa quão desastrosa uma política possa se tornar, desde que as causas do desastre não sejam compreendidas pelo público em geral.

Observemos o fenômeno da uberização e o crescimento da circulação das motocicletas. Não me lembro de debates atuais discutindo e apresentando estudos a respeito. Observa-se, sim, um espetacular crescimento da frota de motos, entretanto, o veículo de mais ágil deslocamento no trânsito da cidade está se tornando o mais arriscado. Por falta de planejamento e investimentos em políticas de mobilidade, acidentes envolvendo motociclistas são cada vez mais comuns, acometem as faixas etárias mais jovens e produtivas, com enormes repercussões econômicas, sociais e emocionais. Veja, se uma coisa pode dar errado, mais cedo ou mais tarde vai dar errado.

Os acidentes com motos lideram as estatísticas no trânsito. Apesar de representarem aproximadamente 30% da frota nacional, o custo dos acidentes com indenizações representa algo em torno de 50% do total pago. Segundo estimativas, o custo anual de acidentes de trânsito (ATs) no Brasil é superior aos R$ 40 bilhões. É uma conta que todos nós pagamos. Motos respondem por quase metade das mortes no trânsito brasileiro. Processo de habilitação muito frágil, falta de qualificação exigida na sua preparação, engenharia das vias, qualidade de pavimentação e imperícia, entre outros, explicam esse quadro.

Em geral, os acidentes de trânsito são infrações que não deram certo, como excesso de velocidade, avanço de sinal, álcool e direção e mudança de pista sem sinalização. Soma-se a isto, a rotina nada dinâmica do anda e para a cada 10 metros em nossas vias urbanas e do ziguezaguear dos motoboys entre as faixas, alheios a qualquer fator de segurança que a manobra exige. A falta de preparação dos condutores e de educação dos usuários da via pública costumam colaborar efetivamente para a bagunça; sejam eles motoristas, motociclistas, ciclistas e até mesmo pedestres.

A responsabilidade social mostra que se alguém goza de um direito é porque outro alguém sofre uma obrigação. Sabe-se que usufruir das vias públicas em modos diferentes de locomoção é direito do cidadão, agora, planejar, orientar, disciplinar e fiscalizar, uma obrigação do Estado. Não podemos continuar aceitando, face às circunstâncias apresentadas, narrativas distorcendo evidências e relativizando a influência dos fatos na formação da opinião pública, invocando à emoção e à crença pessoal.

Pois bem, chegou a hora de tornar boas intenções em políticas e em programas realmente eficientes, investindo tempo e esforços na aferição dos impactos reais dos planos de mobilidade em andamento. Mais uma vez não se trata de princípios, mas de atitudes.

Fernando Repinaldo

Fernando Repinaldo

Especialista em Administração Pública, Gestão de Projetos e Engenharia de Tráfego

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