Etologia: como compreender o que os bichos sentem
A busca de estratégias para medir a dor e decifrar as emoções dos animais
Por Fabrício Marques/Revista Pesquisa Fapesp
Os animais compartilham as mesmas emoções que os seres humanos vivenciam? A psicóloga Lisa Feldman Barrett, pesquisadora da Universidade Northeastern, em Boston, nos Estados Unidos, e autora do livro How emotions are made (Pan Macmillan, 2018, sem tradução para o português), diz que a pergunta segue desafiando a ciência. Quando um ser humano pensa que um animal está experimentando uma emoção, isso pode dizer mais sobre o cérebro humano do que sobre o comportamento animal, explica Barrett. Ela cita como exemplos as reações de uma mosca ao movimento ameaçador de um mata-moscas (esfrega as pernas velozmente), de um rato quando ouve um som que ele foi acostumado a associar a um choque doloroso (congela no lugar) e de um ser humano sendo seguido por um estranho em uma rua escura (arregala os olhos e os batimentos cardíacos aceleram).
Um observador, diz a psicóloga, concluiria que todos os três estão expostos a uma ameaça e, portanto, vivenciam um estado de medo. “Mas aqui está o curioso: os três exemplos não têm praticamente nada em comum fisicamente. Envolvem diferentes tipos de cérebros em diferentes situações, movimentando corpos diferentes de diferentes maneiras”, escreveu Barrett em um artigo publicado em 2022 pelo jornal The Guardian. É o cérebro do observador que tende a associar o medo às três situações. De acordo com Barrett, teria mais utilidade científica contemplar os animais de acordo com suas características.
Cães podem farejar coisas que não captamos e pássaros podem ver cores que nós não enxergamos, então talvez eles também possam sentir coisas que não podemos”, escreveu. “Quando um elefante permanece ao lado do corpo de outro durante dias, é evidente que algo está acontecendo ali, mas por que deveria ser uma versão primitiva do luto humano? A ideia de que outros animais partilham as nossas emoções é convincente e intuitiva, mas as respostas que fornecemos podem revelar mais sobre nós do que sobre eles”.
As aparências podem enganar. “Quando vemos cavalos adultos brincando em cativeiro, isso não é necessariamente um bom sinal”, disse ao site Science News a cientista animal Martine Hausberger, da Universidade de Rennes, na França. Na natureza, segundo ela, cavalos adultos raramente brincam e esse comportamento é mais comum entre os que ficam presos. “Pode ser que eles se sintam felizes no momento da brincadeira, mas cavalos que se sentem bem não precisam disso para se livrar do estresse”.
Pode ser difícil interpretar emoções de animais, mas sobram evidências de que eles têm uma vida mental e emocional complexa. Pesquisadores da Research Institute for Farm Animal Biology (FBN), na Alemanha, demostraram recentemente que os porcos mostram sinais de empatia. Em um experimento, leitões foram colocados em um cercado no meio do qual há uma grande caixa com uma porta e uma janela vazada. A certa altura, a porta da caixa se fecha e porcos no seu interior ficam presos, como se tivessem caído em uma armadilha. Em 85% das vezes, os animais descobriram como abrir a caixa e libertaram o companheiro preso em 20 minutos. Quando não havia nenhum preso, também aconteceu de os porcos conseguirem abrir a caixa, mas a frequência foi muito menor do que quando havia um suíno lá dentro.
Acreditamos que o comportamento de ajuda se baseia em alguma compreensão das necessidades do outro”, disse à revista Science Liza Moscovice, etologista do FBN. “Esse é um componente crítico da empatia”.
O FBN é um dos poucos centros de referência na investigação sobre a cognição de animais explorados pela pecuária, como porcos, cabras e bois. Outro estudo comparou o desempenho de cabras e de cães em um conjunto de testes cognitivos. Cabras submetidas a um experimento conhecido como “tarefa impossível” são expostas a uma tigela de comida à qual não conseguem ter acesso para se alimentar. Embora não tenham uma trajetória de coevolução com os seres humanos, as cabras recorreram ao mesmo expediente utilizado pelos caninos: lançaram-se sobre o homem presente no ambiente como se estivessem pedindo a ajuda dele.
Se não entendermos como esses animais pensam, não compreenderemos o que eles precisam e não poderemos projetar ambientes melhores para eles”, disse à Science Jan Langbein, também etólogo da FBN.
Em outro experimento ainda em andamento, ele avalia a afinidade entre vacas. Pares de fêmeas de bovinos foram colocados em uma arena aberta e observaram-se as interações entre elas: algumas trocam cabeçadas, outras tiveram um comportamento cooperativo. Agora, estão sendo avaliados os níveis de estresse de vacas “amigas” quando elas são separadas após um certo tempo de convívio. Uma das ambições é saber se valeria a pena manter juntos animais com afinidade em ambientes de confinamento, a fim de melhorar seu bem-estar. “Elas não são criaturas burras. Têm uma rica vida emocional e personalidade”, afirmou Langbein à Science.
Se as emoções são difíceis de perscrutar, existem modos objetivos de saber quando os animais sentem dor ou desconforto. “É possível fazer esse tipo de avaliação analisando o comportamento e construindo escalas de dor”, explica Stelio Pacca Loureiro Luna, pesquisador da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia de Botucatu da Unesp, que coordenou um projeto apoiado pela Fapesp, concluído no ano passado, no qual validou essa metodologia para todas as espécies domésticas e de produção, como felinos, bovinos e equinos.
As escalas, ele explica, são construídas a partir da análise de centenas de horas de filmagens de animais. Imagens são registradas antes de uma cirurgia e logo depois dela, quando a dor do pós-operatório atinge seu grau máximo. Seguem sendo captadas quando o animal recebe medicamentos analgésicos e 24 horas depois, quando seus efeitos se esgotam. “Analisamos esses vídeos e anotamos quais comportamentos se alteraram — se ele, por exemplo, balançou a cauda, ficou prostrado ou mudou de expressão — e com que duração e frequência isso aconteceu”, conta Luna.
O projeto deu origem a um aplicativo, o VetPain, lançado no ano passado e disponível para sistemas operacionais Android e IOS, que ajuda veterinários e tutores a avaliar o grau de dor de todos os animais domésticos. É preciso responder a questões que avaliam sinais característicos de dor em comportamentos como postura, nível de atividade e reação ao toque no local afetado. Cada resposta corresponde a um escore na escala de dor e o aplicativo indica se o animal precisa de analgésico (ver Pesquisa Fapesp nº 328).
Segundo Luna, outros métodos vêm sendo desenvolvidos. Ele menciona o Qualitative Behaviour Assessment, por meio do qual comportamentos dos animais são interpretados por seres humanos que os observam, como seus tutores, e expressos em palavras. Uma análise estatística do uso dessas expressões é utilizada para encontrar padrões que identificam comportamentos. “É uma abordagem que ainda precisa ser validada”, afirma Luna.
A reportagem acima foi publicada com o título “O desafio de entender o que os bichos sentem” na edição impressa nº 341, de julho de 2024.
Projeto
Dor e qualidade de vida em animais (nº 17/12815-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Stelio Pacca Loureiro Luna (Unesp); Investimento R$ 835.253,16.
Artigos científicos
FEIGHLSTEIN M. et al. Automated recognition of pain in cats. Scientific Reports. jun. 2022.
BRONDANI, J. T. et al. Validation of the English version of the Unesp-Botucatu multidimensional composite pain scale for assessing postoperative pain in cats. BMC Veterinary Research. jul. 2013.
Fonte: Giz Brasil