Cultura

Retrato descoberto pode representar ‘belo jovem’ de sonetos de Shakespeare

Retrato recém-descoberto com coração desfigurado no verso pode representar o “belo jovem” mencionado em sonetos de William Shakespeare

Por Éric Moreira

A recente revelação de uma miniatura de retrato, atribuída ao renomado artista da Inglaterra elisabetana Nicholas Hilliard, promete provocar novas discussões sobre a relação entre William Shakespeare e o 3º conde de Southampton, Henry Wriothesley. A obra, que exibe um coração vermelho desfigurado em seu verso, sugere uma narrativa de amor não correspondido.
Hilliard, conhecido como o pintor oficial da rainha Elizabeth I, é celebrado por seus retratos minuciosos que cabem na palma da mão e que figuram entre as obras mais valiosas da arte britânica e europeia do século 16. O retrato em questão apresenta um jovem andrógino adornado com joias e longas mechas de cabelo, considerado a primeira representação conhecida do conde Southampton, amigo e patrono de Shakespeare — frequentemente apontado como o “belo jovem” mencionado nos sonetos do dramaturgo.

Shakespeare dedicou seus poemas eróticos, ‘Vênus e Adônis’ e ‘A Violação de Lucrécia’, ao conde Southampton, afirmando: “o amor que dedico a Vossa Senhoria não tem fim”. Essas conexões intensificam a importância da miniatura recém-descoberta. A miniatura foi pintada em pergaminho fino, colado a cartas de baralho para maior rigidez. O verso do retrato revela um cartão cujo coração vermelho foi coberto com a imagem de uma lança ou símbolo de espadas, indicando simbolicamente um coração partido. Essa peculiaridade chamou a atenção das historiadoras de arte Drª Elizabeth Goldring e Emma Rutherford, que se mostraram surpresas com tal desfiguração.

Goldring, docente honorária na Universidade de Warwick e autora de uma biografia premiada sobre Hilliard, expressou ao The Guardian: “você sempre sabe que existe a possibilidade de haver uma pista na contracapa ou escondida dentro da moldura, mas quase nunca há. Desta vez, havia — e foi absolutamente emocionante. Arrepios na espinha. Alguém se esforçou muito para estragar a contracapa desta obra”.

Rutherford, fundadora da Limner Company, uma consultoria e comércio especializado em arte, acrescentou: “não consigo encontrar nenhuma outra evidência desse tipo de vandalismo. Todos saberiam que uma miniatura teria uma carta de baralho atrás, mas o verso da carta nunca era visível. Originalmente, ela estaria guardada em um medalhão muito caro, possivelmente cravejado de joias. Seria preciso tirar a miniatura do medalhão para vandalizar o verso dessa forma. Portanto, é uma descoberta extraordinária, um mistério de 400 anos”.

Frente e verso do retrato (Foto: Divulgação/Getty Images)

Relação com Shakespeare
A pesquisa realizada por Goldring e Rutherford, em colaboração com o professor Sir Jonathan Bate, especialista em Shakespeare, foi publicada no Times Literary Supplement na edição dia 5 de setembro. No artigo, eles mencionam que o fato do coração ter sido coberto com uma espada ou lança evoca imediatamente pensamentos sobre Shakespeare — cuja heráldica incorporava uma lança como um trocadilho em seu sobrenome — embora pouco se saiba com certeza sobre as interações entre ele e Southampton.

Goldring previu que “a descoberta desta miniatura irá, suspeito, reacender o debate sobre a natureza do relacionamento entre Shakespeare e seu patrono Southampton, incluindo a possibilidade de que Southampton possa ter sido uma inspiração para alguns dos sonetos”. Os historiadores sugerem que essa miniatura poderia ter sido um presente de Southampton a Shakespeare, possivelmente retornada ao conde por volta de 1598, ano em que Shakespeare contraiu matrimônio. Durante a corte elisabetana tardia, Southampton era conhecido por sua beleza andrógina e sua vaidade.

No final dos anos 1590, John Clapham dedicou sua obra ‘Narciso’, uma reinterpretação do mito de Ovídio sobre um jovem belo apaixonado por sua própria imagem, ao conde. Thomas Nashe também elogiou Southampton em sua dedicatória à obra ‘O Viajante Infeliz’: “você é um fervoroso amante e estimador, tanto dos amantes dos poetas quanto dos próprios poetas”.

A miniatura permaneceu nas mãos de proprietários que possuem conexão familiar com Southampton sem conhecimento da autoria ou relevância da obra, tendo sido guardada em uma caixa durante anos. Eles entraram em contato com Goldring e Rutherford após lerem sobre a descoberta de outra miniatura atribuída a Hilliard. Rutherford destacou: “isso nunca foi publicado. Nunca foi visto em público”. Os historiadores acreditam que o retrato representa Southampton no início dos anos 1590, quando ele estava na adolescência tardia, pouco antes de atrair o patrocínio de Shakespeare.

Sobre a identidade do destinatário dos sonetos de Shakespeare — um tema debatido incansavelmente — eles afirmam: “repetidamente, os sonetos retornam à beleza andrógina do belo jovem. Assim, por exemplo, no soneto 99, seu cabelo é comparado à ‘manjerona’, cujos cachos são longos e encaracolados: seria isso uma alusão aos característicos cachos longos de Southampton?”.

Os historiadores argumentam que todos os aspectos dessa miniatura sugerem uma imagem íntima; desde o gesto do jovem segurando suas mechas ruivas junto ao coração até os dois braceletes de pérolas adornando seu pulso. Rutherford observou que braceletes eram comuns em retratos femininos dessa época, mas raramente vistos em representações masculinas; da mesma forma como cabelos longos.

Além disso, ela comentou que ao olhar para o retrato pela primeira vez é difícil determinar se representa um homem ou uma mulher: “é simplesmente extraordinário. Com certeza é uma das primeiras imagens homoeróticas inglesas”.

Fonte: Aventuras na História

Luzimara Fernandes

Luzimara Fernandes

Jornalista MTB 2358-ES

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