Contas na UTI: governo tenta manter arcabouço vivo “por aparelhos” até as eleições

Haddad e Lula: para cumprir a meta deste ano, o governo ainda precisa encontrar R$ 27,1 bilhões extras
Por Rose Amantéa
O ministro Fernando Haddad negou reiteradas vezes que vá mudar a meta do arcabouço fiscal, que disciplina o Orçamento do governo. Mesmo com as dificuldades enfrentadas para fechar as contas, Haddad tem celebrado o suposto compromisso do Executivo em restaurar “a credibilidade fiscal com responsabilidade e transparência”, conforme afirmou em evento recente em São Paulo.
Mas grandes bancos, consultorias e economistas já falam abertamente sobre a possibilidade de revisão da regra, que vem sendo cumprida basicamente graças ao esforço contínuo de aumento da arrecadação do governo Lula, além da retirada de um apanhado de despesas do Orçamento da União, com a rubrica de “despesas parafiscais”. Para cumprir a meta deste ano, o governo ainda precisa encontrar R$ 27,1 bilhões extras, segundo relatório de outubro da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado. Isso já considerando a margem de tolerância da regra, que permite um déficit de 0,25% do PIB, ou R$ 31 bilhões. O centro da meta, de déficit zero, só seria alcançado com receitas adicionais próximas de R$ 60 bilhões.
Governo vai manter arcabouço “até onde der”
O custo político de revisão da regra é alto. Na prática, significaria a falência do que Haddad já classificou como “régua de confiança do governo”, e escancararia a falta de compromisso com o controle da dívida pública. As consequências seriam imediatas: perda de credibilidade junto a investidores, aumento da Selic e dos juros futuros, com aumento do custo da dívida, o que geraria pressão no câmbio e maior volatilidade nos mercados.
“Politicamente, uma mudança explícita na regra traria um custo altíssimo: haveria forte retaliação do mercado, o tema dominaria negativamente os jornais, e o governo seria criticado de forma contínua”, diz Roberto Simioni, economista-chefe da Blue3. Por isso, ele avalia que o governo deverá empurrar o arcabouço fiscal por meio de artifícios contábeis e ajustes marginais pelo máximo de tempo possível.
O arcabouço é como um carro com defeito que precisa aguentar até o fim de uma viagem”, diz. “Ele [o governo] precisa manter a regra por mais seis meses, até abril. Depois disso, o país entra em período eleitoral e o governo pode anunciar a revisão para 2027, sem tanto desgaste”.
Para João Mário de França, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre), a regra do arcabouço está longe de garantir o reequilíbrio das contas. Mas conseguirá ser mantida por meio de artifícios. “O pior que o governo poderia fazer seria abandonar o arcabouço fiscal antes de terminar o primeiro mandato”, afirma.
Então, ele vai até 2026 empurrar o arcabouço fiscal da maneira que puder, atendendo o limite da banda inferior e tirando despesa da regra para não computar como despesa primária. A imagem que eu faço da regra é de um paciente na UTI, mantido vivo por ‘aparelhos’ até pelo menos próximo às eleições”.
Derrotas do governo complicaram arrecadação e equilíbrio fiscal
A insustentabilidade da regra para 2026 tem sido evidenciada com a dificuldade do governo em aprovar parte das medidas para o aumento de arrecadação. O primeiro alerta veio com o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), elevado por decreto de Lula. Em junho, o Congresso derrubou o aumento de alíquotas. O governo só conseguiu restabelecer a alta graças a uma decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), em julho. E mesmo assim com uma exceção que limitou a arrecadação esperada.
No início de outubro, veio uma nova derrota do Planalto: o arquivamento da Medida Provisória n.º 1.303 — a “MP da Taxação”, que previa novas receitas e alguma contenção de despesas e havia sido incluída nas contas do Ministério da Fazenda para tentar equilibrar o Orçamento. O tema ganhou novo fôlego com um embate recente com Tribunal de Contas da União, que alertou a Fazenda sobre a necessidade de buscar o centro da meta fiscal — interpretando a tolerância de 0,25% do PIB como uma margem de ajuste, não como meta alternativa.
Depois de obter do TCU a suspensão da obrigação, Haddad suspirou um pouco mais aliviado. A decisão monocrática do ministro Benjamin Zymler afastou, ao menos temporariamente, o risco de um bloqueio adicional de até R$ 31 bilhões no orçamento. “Se fosse exigido o centro da meta para 2025, já seria difícil o governo cumprir”, avalia França, do Ibre. “Mesmo mirando a banda de tolerância o governo está tendo dificuldades, imagina sem ela”.
Warren diz que meta de 2026 é “inviável”
Os últimos relatórios de instituições financeiras trazem cenários diversos, mas igualmente preocupantes. Economistas do Itaú acham que será difícil de cumprir a meta fiscal, mas não apostam na revisão em 2026. A XP acredita que há risco, mas que será superado. Relatório do Bradesco levanta preocupações, mas atesta que, apesar das dificuldades, a meta será cumprida.
O documento da Warren Investimentos, no entanto, publicado em 23 de outubro, é categórico em afirmar que a meta para 2026 é inviável e deverá ser ajustada. Os economistas Felipe Salto, Josué Pellegrini e Gabriel Garrote projetam um déficit primário de R$ 96,6 bilhões no ano, equivalente a 0,71% do PIB, enquanto o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) exige um superávit de 0,25% do PIB, cerca de R$ 34,3 bilhões.
O cálculo já considera despesas fora do arcabouço, como as parafiscais e os precatórios. Mesmo excluindo R$ 57,8 bilhões em precatórios excedentes e uma redução prevista de R$ 16,3 bilhões em gastos discricionários, ainda seria necessário cortar mais R$ 38,7 bilhões para equilibrar as contas. A Warren também destaca o impacto da não aprovação da MP 1303 no diagnóstico: “com a não aprovação da matéria, tivemos que reavaliar para baixo a arrecadação de 2026”.
O governo estimava que o impacto fiscal positivo da MP 1303 seria de R$ 31,5 bilhões, sendo R$ 20,9 bilhões relativos a aumento de receita e R$ 10,6 bilhões advindos de redução de despesa. No entanto, mesmo antes da não aprovação, os analistas já consideravam essa estimativa exagerada, projetando um ganho fiscal de apenas R$ 8,8 bilhões, basicamente pelo lado da receita.
Não se sabe ao certo qual parcela desse impacto foi de fato incorporada no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) do exercício de 2026, pois nem todos seus componentes foram explicitados na mensagem presidencial que acompanhou o envio do PLOA ao Congresso. De qualquer modo, a não aprovação da MPV tornará ainda mais desafiadora a gestão fiscal de 2026”, escrevem os economistas.
O ministro Fernando Haddad afirmou que pretende reapresentar dois projetos de lei para compensar parte das receitas perdidas nos próximos dois anos. A ideia é obter um aumento de cerca de R$ 10,6 bilhões ainda em 2025, limitando compensações tributárias de empresas e ampliando a taxação sobre setores específicos, como apostas eletrônicas (bets) e instituições financeiras digitais (fintechs).
Os projetos do Executivo não foram enviados, mas as medidas foram enxertadas dentro de um outro projeto de lei — que combate a adulteração de alimentos e bebidas — por um parlamentar petista. No jargão do Congresso, esse tipo de inclusão sem relação com o teor original do projeto é conhecido como “jabuti”. Mesmo com as negociações junto ao presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), não há garantias de que a aprovação será tranquila.
Insuficiente, regra fiscal foi ainda mais afrouxada
As críticas à regra fiscal não são novidade. Desde que foi criado, em 2023, em substituição ao Teto de Gastos do governo Michel Temer (MDB), o arcabouço é visto como insuficiente para atenuar o aumento da dívida pública. Na prática, ele autoriza o governo a aumentar as despesas todos os anos, desde que a arrecadação cresça, o que significa que o endividamento pode continuar subindo de forma supostamente “controlada”. Caso as metas não sejam cumpridas, o governo é obrigado a acionar gatilhos de contenção de despesas.
É muito preocupante, porque se questiona a viabilidade de se manter um arcabouço fiscal que, por si só, não garante a sustentabilidade”, afirma França, do Ibre. “A relação dívida/PIB precisa cair ao longo do tempo. Um arcabouço que não garante isso já nasce comprometido”.
Simioni destaca que algumas alterações em 2024 afrouxaram ainda mais a regra. A meta de superávit primário originalmente prevista para 2025 foi revista para déficit zero. O mecanismo de contingenciamento automático também foi flexibilizado, permitindo ao governo evitar cortes mesmo com frustração de receitas. “Eles não resolveram o ‘defeito de fabricação’ de colocar a banda de limite”, diz. “A tolerância de 0,25% nos gastos pressupõe ter uma arrecadação constantemente crescente para sustentar todo o gasto autorizado”.
Vale lembrar que mesmo o aumento da arrecadação não tem sido suficiente para fazer frente aos gastos do governo. Segundo dados da Receita Federal, a arrecadação total — soma de todos os impostos e outras receitas — entre janeiro e setembro passou de R$ 2,1 trilhões, cerca de 3,5% acima do valor registrado um ano antes, já descontada a inflação.
Paralelamente, o último relatório do Tesouro, referente a agosto, apontou déficit primário de R$ 86,1 bilhões desde o início do ano. Dados mais atualizados, capturados pela IFI no sistema Siga Brasil, indicam que o déficit até setembro chegou a quase R$ 101 bilhões.
Governo vai ativar modo “parafiscal”
Para o economista-chefe da Blue3, a saída para o governo daqui para frente será “trabalhar o que puder no parafiscal”. Ou seja, tirando o que puder do Orçamento e gastando por fora, um mecanismo aprovado para acomodar imprevistos, como as enchentes ocorridas em 2024 no Rio Grande do Sul. A última medida neste sentido foi a retirada de R$ 5 bilhões de gastos com as Forças Armadas da meta fiscal, chancelada pelo Congresso na última quinta-feira (23).
Pelos dados da IFI, considerando a medida sobre a Defesa e o socorro às empresas afetadas pelo tarifaço dos Estados Unidos, de R$ 9,5 bilhões, as deduções da meta podem chegar a R$ 157,3 bilhões de 2024 a 2026. “Tudo a partir de agora, vai sair de fora do Orçamento”, afirma Simioni. “É como se eu tivesse uma mesa de jantar posta impecavelmente, mas com uma bagunça acontecendo embaixo da mesa”.
Para França, o governo tem passado “a falsa sensação de cumprimento da regra”, mas não vai impedir o tema de vir à tona na campanha eleitoral de 2026. “[A situação fiscal] vai aparecer bastante, e em 2027, independentemente do presidente, precisará ser discutida por Legislativo, Executivo e Judiciário”, diz.
Se houver um governo com compromisso maior com o reordenamento fiscal, fica mais fácil. Mas, mesmo que Lula seja reeleito, no primeiro ano do próximo mandato, em 2027, já haverá discussão sobre nova agenda de reequilíbrio fiscal. Essa agenda será inadiável”.
Fonte: Gazeta do Povo





















