‘Frankenstein’: a obra que segue incompreendida 200 anos após sua publicação

Publicado há mais de dois séculos, romance de Mary Shelley se tornou um grande fenômeno da cultura popular, mas segue incompreendido
Por Giovanna Gomes
Durante uma noite chuvosa, no verão europeu de 1816, estavam reunidos na Villa Diodati, às margens do Lago Genebra, na Suíça, Mary Godwin (que mais tarde ficaria conhecida como Mary Shelley), Percy Shelley, Lord Byron e John Polidori. E essa reunião casual mudaria para sempre a história da literatura.
Na data, o grupo teve a ideia de desafiar uns aos outros a escrever uma história aterrorizante. A ideia inicial era que as obras tratassem de fantasmas. No entanto, Mary descreveria depois o desejo de criar algo que “despertasse um horror emocionante”. O resultado foi um romance que transcendeu o terror, um texto que misturava filosofia, ciência e tragédia, e que daria forma ao que seria considerado o primeiro romance de ficção científica: Frankenstein.
Entretanto, mais de duzentos anos após sua publicação, a obra segue incompreendida. Às vésperas do lançamento da nova adaptação de Frankenstein por Guillermo del Toro — estrelada por Oscar Isaac e Jacob Elordi —, revisitaremos o que há por trás dessa história tão icônica.

Em Frankenstein, o jovem cientista Victor Frankenstein cria vida a partir da morte. Movido pela ambição, ele dá forma a um corpo composto de partes humanas. Horrorizado com o resultado, ele, no entanto, rejeita a criatura no momento em que ela abre os olhos. E é justamente esse abandono, segundo uma matéria da BBC, que pode ser considerado o verdadeiro pecado original da história.
Por trás da narrativa, Shelley condensou os sentimentos de uma era. A sociedade da época vivia um momento de transição: a Revolução Industrial estava alterando a relação do homem com a natureza, enquanto a ciência começava a desafiar as fronteiras do sagrado. Além disso, debates sobre a “faísca da vida” e os limites do conhecimento humano eram comuns.
A jovem autora, então com 18 anos de idade, estava cercada por intelectuais como seu pai, William Godwin, e o poeta Percy Shelley, todos fascinados — ao mesmo tempo que amedrontados — pelas novas descobertas. Também não podemos esquecer os experimentos de “galvanismo”, como os de Luigi Galvani e Giovanni Aldini, que faziam cadáveres se moverem por estímulos elétricos, os quais inspiraram diretamente a criação da escritora.
Mesmo o subtítulo do livro — O Prometeu Moderno — não é por acaso. Como o titã da mitologia grega que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens, Victor Frankenstein ousa brincar de criador e representa os perigos do exagero. Como destaca a fonte, Mary Shelley escreveu sobre ciência e ambição, mas também sobre maternidade e perda: afinal, ela havia perdido a própria mãe ao nascer e enterrado uma filha pouco antes de escrever o livro. Desse modo, o vínculo entre criador e criatura, ou entre pai e filho, é o núcleo emocional da narrativa.
Ao longo dos séculos, no entanto, Hollywood e a cultura popular transformaram essa tragédia filosófica em espetáculo. As primeiras adaptações teatrais, ainda no século 19, já haviam simplificado o enredo, dando origem à figura do “cientista louco” e ao monstro sem voz, arquétipos que definiriam o gênero de terror. O filme de 1931, com Boris Karloff, fixou para sempre a imagem da criatura com parafusos no pescoço, assim como a célebre frase “Está vivo”, ausente do livro. Essa estética teatral garantiu a imortalidade de Frankenstein no cinema, mas também apagou a sutileza da história original.

Na verdade, a criatura de Shelley não é um monstro irracional. Ela pensa, lê Paraíso Perdido e questiona seu criador com a eloquência de um filósofo: “lembre-se de que sou sua criatura; eu deveria ser teu Adão, mas sou antes o anjo caído a quem tu expulsas da alegria por nenhum delito. Em todos os lugares vejo bem-aventurança, da qual só eu sou irrevogavelmente excluído. Eu era benevolente e bom; a miséria me tornou um demônio. Faça-me feliz e serei novamente virtuoso”.
Logo, é a recusa de amor, não a maldade inata, que o transforma em assassino.
O novo filme de Guillermo del Toro, lançado nos cinemas em 17 de outubro e, na Netflix, em 7 de novembro, pretende justamente resgatar o tema central da obra: o elo emocional entre o criador e sua criação. Ele descreveu sua adaptação como uma história sobre “a linhagem da dor familiar”, mais interessada na tragédia humana do que no horror.
Ele era um estranho. Ele não se encaixava no mundo. Ele estava deslocado da mesma forma que eu me sentia quando criança”, disse del Toro sobre o monstro.
Em 2018, quando recebeu um prêmio Bafta por uma fábula diferente, “A Forma da Água”, Del Toro agradeceu a Shelley por inspirá-lo: “ela pegou a situação de Caliban e deu peso ao fardo de Prometeu, e deu voz aos sem voz e presença ao invisível, e me mostrou que às vezes para falar sobre monstros, precisamos fabricar nossos próprios monstros, e as parábolas fazem isso por nós”.
Fonte: Aventuras na História












