Comportamento & Equilíbrio

Como cresce uma Criança? — Parte V

Com as palavras, progredimos na Comunicação enquanto Cultura Oral. As palavras vão preencher, com rigor, o conteúdo da ciência, vão encenar os conflitos e as dores humanas no teatro

A aquisição da linguagem é todo um processo de muita complexidade que envolve vários sistemas e outros vetores do desenvolvimento. A palavra, falada e escrita, é um diferencial da espécie humana. A palavra é a tradução de emoções e pensamentos, que apontam para o marco civilizatório.
A habilidade com as palavras equivale à destreza dada pela aquisição psicomotora da pinça fina, a oposição do polegar ao indicador que se inscreve, como já abordamos, na escrita, na arte, na medicina. Com as palavras, progredimos na Comunicação enquanto Cultura Oral. As palavras vão preencher, com rigor, o conteúdo da Ciência, vão encenar os conflitos e as dores humanas no teatro, e vão dar asas infinitas para os voos da Poesia.

A Música é outra forma de linguagem, que expõe emoções e sentimentos. As notas musicais, os compassos que trazem a matemática das divisões em espaços, contam sonhos e tragédias, tristezas e alegrias, que nos invadem. A Poesia, aplicada às notas musicais, relata contemplação, amores felizes e amores sofridos. São línguas eloquentes.

A Música é uma forma de linguagem, que expõe emoções e sentimentos (Foto: Getty Images)

A História se encarregou de trazer método e muitas regras gramaticais para as línguas. Mas muitas sociedades tiveram, e algumas ainda têm, línguas orais e só orais. Entre nós, temos a equivocada impressão que o Português Brasileiro é nossa única língua. Mas existem 180 idiomas falados pela nossa população indígena. Lamentavelmente, se aproximam cada vez mais da extinção pelo desprezo nutrido de preconceito por se imaginar que só é bom o que é enquadrado nas regras formais. E a comunicação, com sua importante função humanitária, é detonada.

Assistimos, atualmente, ao reducionismo linguístico. A “língua tecnológica” que vem das teclas mudas, do celular, do computador, (isso que estou vivendo nesse minuto), aponta, ao mesmo tempo, para o distanciamento e a aproximação entre as pessoas. A morte da linguística, em sua imensidão de possibilidades, ocasionada pelas abreviaturas e pela ausência de regras gramaticais, campo onde vigora uma espécie de vale tudo da capacidade de se expressar, trouxe um empobrecimento. A comunicação entre pessoas que pertencem a um grupo que domina essa nova tecnologia digital tirou o som das vozes e as emoções das entonações, variação do sussurro ao grito. Valorizando os avanços, nem sofremos, mas, perdemos.

A “língua tecnológica” que vem das teclas mudas, do celular, do computador, aponta, ao mesmo tempo, para o distanciamento e a aproximação entre as pessoas (Foto: Evgenyatamanenko/Dreamstime)

E, se o desenvolvimento da linguagem é tão complexo e extenso, assim como o desenvolvimento cognitivo, o desenvolvimento afetivo é ainda mais complexo. Muitos são os teóricos da Psicologia e da Psicanálise, que se debruçaram sobre ele, porque é fundamental a sua importância para a efetivação de todos os outros vetores de crescimento. Sem ele, os outros aspectos serão, severamente, comprometidos. É o afeto, o recebido, o retribuído, que mantém todas as aquisições humanas, de todas as ordens.
O bebê humano nasce com necessidade de dois alimentos: o nutriente e o afeto. O leite materno é, por excelência, o nutriente preferencial para a saúde do bebê. O afeto é o caldo que repercute o cuidado que garante a sobrevivência, tanto quanto o nutriente, o afeto é alimento, também.

René Spitz, chefe da Enfermaria de Pediatria no Sistema de Saúde em um hospital em Paris, começou a observar que Crianças que eram internadas para algum tratamento, clínico ou cirúrgico, (à época não era permitido que a mãe fosse acompanhante), se ressentiam tanto da ausência da mãe que, mesmo cuidados com conforto, boa alimentação e higiene adequada, entravam em processos regressivos, apresentavam retraimento no contato com a equipe e iam perdendo as aquisições de desenvolvimento já conquistadas. Preocupado com alguns casos em que esse comportamento de se ausentar do convívio, da troca até de olhares com as pessoas que se encarregavam dos cuidados necessários, era possível constatar que algumas Crianças eram acometidas de maneira severa. Algumas apresentavam uma verdadeira “retirada” do mundo, se ensimesmavam, recusavam a alimentação, entravam em processo de caquexia, chegando até ao óbito. Nem mesmo os cuidados “corretos” necessários conseguiam estancar a derrocada daqueles pequenos, ali dentro de um hospital.

O desenvolvimento da linguagem é tão complexo e extenso, o desenvolvimento afetivo é ainda mais complexo (Foto: iStock/Tatiana Dyuvbanova)

Intrigado, Spitz foi buscar no estudo feito por um Fisiologista, Harlow, que descreveu uma experiência com chipanzés recém-nascidos que tinham ficado órfãos por ocasião de seus nascimentos. Harlow construiu, numa grande sala, uma macaca confeccionada de arame e que tinha, numa das mãos, uma mamadeira onde havia leite à vontade. No outro lado, construiu uma macaca feita de trapos de tecido, lãs, um colo, mas não tinha leite. Os pequenos chipanzés, um a um, eram colocados na sala. Logo descobriam a mamadeira com o leite, bebiam e iam se aconchegar no colo da macaca de panos e lãs. E, ali ficavam, indo apenas se alimentar rapidamente, voltando logo em seguida.

Mas, como no caso da Enfermaria, alguns macaquinhos passavam a ficar somente no aconchego do colo quentinho, deixando de se alimentar a ponto que alguns comprometiam a saúde, e outros, contrariando o instinto de conservação da espécie, vieram a falecer. Essa constatação de Harlow, explicou o comportamento de sofrimento extremo das Crianças que vivenciavam um abandono materno pela separação da internação. Inspirado por esse estudo, Spitz trouxe uma compreensão para esse comportamento, que chamou de Hospitalismo. E solucionou essa resposta depressiva das Crianças, destacando uma enfermeira para cada uma que apresentasse o quadro de Hospitalismo, saindo do rotineiro esquema de rodízio das cuidadoras. E foi evidenciado, assim, que uma vez cuidada pela mesma pessoa, a Criança saía do quadro e retomava o convívio saudável e o desenvolvimento.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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