Direito de Ir e Vir. Se for Mulher, não tem — Parte II

Hoje, temos mais um tipo de violência: a violência judicial. A justiça adentrou as famílias imprimindo normas, na tentativa impossível de judicializar afetos
Intrigante pensar que o Direito de Ir e Vir, simples, básico, para ser reclamado, necessita da Voz. É preciso falar e ser escutada para pleitear o Ir e o Vir. Nesse ponto, abrimos uma seara imensa, talvez um abismo que serve de fosso para isolar, porque é como se nossa Voz fosse aquela dos pesadelos, quando, diante de um grande perigo, a Voz não emite som. Falamos, mas o som de nossas palavras, carregadas de emoções, incluso o medo, não valem nada. Tenho a sensação de que venho falando, há décadas, num deserto árido, e que me responde com punições, as mais diversas, as mais cruéis. Minha fala, e de muitas mulheres e homens honestos, é inaudível.
Sendo corriqueiro entre nós, não nos cabe a exclusividade da violência contra a mulher pelo descrédito que é dado à sua voz. Assistimos, estupefatos, ao retrocesso da justiça espanhola, proferida por uma Câmara de Apelação formada por quatro julgadores, sendo um homem e três mulheres.
Sim, três mulheres. Essa 2.ª Instância anulou a decisão anterior de condenação por estupro. Não o julgaram inocente. Saíram, como é de hábito, por formalidades que, nesse caso, com a interpretação, também de praxe, parece universalizada, de que as provas são insuficientes. Não vamos relacionar as provas materiais comprovadas, incluindo sêmen nas roupas íntimas e no vestido da vítima, ao devido DNA apontando o seu dono.

Se o que trouxe a vítima de provas materiais foi interpretado como insuficiente, foram cinco as versões contadas pelo suspeito. Ele mudou cinco vezes de relato, começando por dizer que nunca tinha visto a vítima até chegar ao famoso “sexo consensual”, as marcas no corpo das vítimas são detalhes desprezíveis, em embriaguez com apagão de memória. Interessante. O estado de alcoolismo deste nível sabe-se, que não produz eficiência para o ato sexual, menos ainda dessa proporção. Mais detalhes desprezíveis, apenas. Vale lembrar que a vítima fez questão de manter o anonimato e avisou que não aceitaria nenhuma quantia como “ressarcimento”. Será que isso diz alguma coisa? Isso não foi interpretado pelos doutos julgadores. Nem ao menos lido, no simples. A jovem não quer ser identificada, nem recebe dinheiro em troca de um acordo. Ela foi buscar Justiça na justiça.
Se voz + provas materiais não resultam em nada, por que propor mais uma Panaceia quando se torna lei a violência psicológica? Para que serve? Para iludir mais as mulheres? Com provas concretas o relato da mulher é insuficiente, como se dará a mágica de fazer valer o relato do sentimento de medo, do sentimento de humilhação, do sentimento de desprezo? Quais serão os julgadores? Como validar as marcas da alma, as marcas subjetivas, as marcas que não ficam roxas ou não escorrem sangue ou sêmen?
A ministra Cármen Lúcia, há alguns dias, se referiu à defesa do um feminicida de maneira emblemática. O respeitado e brilhante advogado que o defendia, trouxe ao júri como convencimento que a mulher havia cometido suicídio com mãos alheias. Ela foi estrangulada por ela mesma “usando” as mãos do assassino, o ex-marido. Tomei conhecimento de um laudo, feito a distância, de alguns Estados, onde a Psicóloga, até hoje não responsabilizada por isso, afirmou que o ex-marido havia descarregado a arma, na presença do filho criança, porque ela, a mãe, praticava alienação parental com o pobre homem.

A Advocacia-Geral da União (AGU) condenou um portal que divulgou mentiras sobre as agressões sofridas por Maria da Penha. Paraplégica para sempre porque o pobre homem se confundiu com ela dormindo e pensou que fosse um ladrão, depois de várias outras tentativas de feminicídio, e vários espancamentos. Nada era levado adiante pela autoridade policial, tudo engavetado, inclusive esses tiros em sua coluna. Foi preciso a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenar o Estado Brasileiro por omissão e negligência, o que ensejou a Lei Maria da Penha.
Essa lei, que tipificou a violência doméstica em suas cinco formas de agressão, contém a Violência Psicológica. Sendo sincera, não confio na implementação desse tipo de combate e responsabilização do sentir. Olhar os resultados dos exames atestando, com a possibilidade de comprovação repetida, não transpõe a barreira da misoginia.
Hoje, temos mais um tipo de violência: a violência judicial. A justiça adentrou as famílias imprimindo normas, na tentativa impossível de judicializar afetos. A dor sentida emocionalmente é negada a mulheres e a crianças, a maternidade, até mesmo na amamentação, é ceifada. E, como um “serial”, segue incólume, também sem responsabilização para os erros gritantes que são cometidos, e tantas vezes revelados.
O Direito de Ir e Vir nas audiências de Família é violado. Ir numa audiência com essa roupa ou aquela roupa, garante o preconceito de adjetivos, de desqualificação moral silencioso, mas determinante na sentença. Há instruções severas feitas por advogados para que a mulher “pareça normal”, como dizem. Para além da roupa, da aparência, há instruções de comportamento que excedem ao devido tratamento dessa ocasião. Chorar, nem pensar. Histérica. Ela está perdendo um filho, um detalhe. Escuta um grito para parar. Mas, não chorar também traz afirmação de frieza. É o teatro da vida da mulher e da criança sob a direção e o julgamento de um Poder absoluto.