Comportamento & Equilíbrio

Adolescência hoje, as dependências, as violências — Parte III

A adolescência é o período da vida cuja essência é a intensidade. Como ser intenso, como lutar, discutir, contestar ideias, se tudo muda, ou tudo é de mentira, ou tudo é raso sem fundamentação?

Ser adolescente hoje é muito complexo, com direito a uma dose de perigo. Se, fisiologicamente, a Natureza se repete com a explosão hormonal, o crescimento corporal acelerado, aquilo que seria uma batalha, ou batalhas, contra o mundo na concepção mégalo do adolescente, hoje, ele não encontra duas vezes seguidas o mesmo mundo para empreender sua luta pela solução dos problemas. A luta para contestar vem sendo desidratada, a verdade, como instituto, foi derrotada. A realidade é inventada a cada momento no mundo paralelo, de tal maneira que perdemos a convicção do que é real e do que não é real. Assistimos a uma figura pública falando algo que parece ser, em parte, a expressão de seu pensamento, sua posição já explicitada, mas há algo que não combina. Aprendemos, nesses últimos tempos, o conceito de “fake”. A falsificação, a mentira, se tornou banal, e ganhou até um novo apelido, a “desinformação”. E, “viralizou”. Parece que saído de uma pandemia por vírus violento, adotamos o modelo da biologia para o fenômeno da contaminação virtual. E a IA surge, magnífica, porque o é, e expõe sua acessibilidade. Ela se espalha. A IA faz em segundos uma tese de um curso acadêmico, responde qualquer questão, e, até virou psicoterapeuta. E se pretende humanoide, escuta as dores emocionais dos humanos e dá conselhos. A carência e o desamparo são tamanhos que as pessoas se conformam com a máquina, e alucinam um processo terapêutico. Afinal, a questão não é ser, mas parecer ser. Só parecer basta.

(Foto: Freepik)

No entanto, a adolescência é o período da vida cuja essência é a intensidade. Como ser intenso, como lutar, discutir, contestar ideias, se tudo muda, ou tudo é de mentira, ou tudo é raso sem fundamentação? Esvaziaram o mundo. Ao adolescente não restou com quem experimentar a sua fundamental fase de questionamentos, de busca de sua própria identidade através desse trabalho que vai forjando seu perfil.

Se não há verdade, se tudo pode ser mentira, se o Poder assumiu várias formas, as mais diversas, e se travestiu no bem mais cobiçado, como fazer frente a isso? É muito fácil se tornar um Poderoso na internet. Recebi um vídeo de uma moça no final da adolescência que foi presa por estar tramando matar os pais. Ela falava, sem constrangimento, que era só um impulso, porque estava conversando com um garoto que tinha assassinado o pai e foi lhe dando essa “ideia”. Ela comprou a faca para executar o que o amigo lhe sugeria, e pensava que podia matar o pai e a mãe enquanto eles dormiam. Respondia que não tinha raiva deles, não havia um motivo, que era apenas um impulso. O que seria “um impulso”? Como entender esse termo nesse contexto? Seria um neologismo? O que tinha força nas palavras que o “amigo de internet” usava que conseguiu montar um “impulso” assassino nela, contra os pais? Qual o processo de simplificação operado em sua mente que fez com que comprasse a faca para matar os pais? Esse foi um rompimento de uma ideação que rasgou a realidade. E, mesmo que reconhecendo que não havia uma queixa raivosa, uma mágoa consistente na relação com esses pais, ela seguia obedecendo ao “amigo de internet”.

(Foto: Freepik)

Algo nos escapa, penso. É muita torpeza para sustentar uma atitude irreversível desta monta. Falta-nos muito estudo para tentar correr atrás de algo que já perdemos de vista. Parece que vivemos em mundos desconhecidos, com pessoas desconhecidas, agindo de maneira desconhecida.

O tempo também é fluido como as relações. O futuro é amanhã, apenas. Ou, o futuro é o próximo joguinho ou o próximo desafio. Os adultos não têm tempo, e se iludem achando que se o filho está dentro do quarto, está tudo bem, mesmo que ele não saia de lá por três ou quatro dias. O suicídio na adolescência aumenta. O radicalismo da fase é o combustível para acabar com a dor do vazio, da inércia falsificada da vida.

Talvez alguns pensem que estou exagerando. Mas as crianças, que serão em breve os adolescentes, estão acompanhando tudo isso. Toda essa violência combinada com um vazio de objetivos, de compromissos com propósitos e com pessoas que deveriam trocar afetos. Precisamos cuidar melhor de nossos adolescentes. Não sabemos como fomos parar aqui. Precisamos saber como retomar a vida com eles, a de verdade, resgatada da derrota.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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