Feminicídio Continuado, Neoplasia, AVC e Infarto — Parte II

Não devemos ser ingênuos ou omissos nesse campo das violências contra mulheres e crianças
Sonhar não custa nada. Então, sonhemos que vamos conseguir reorganizar a Cultura da Convivência Social, em especial, que vamos conseguir que homens não matem, estuprem ou agridam de diversas formas, vulneráveis mulheres, meninas, meninos, bebês, homossexuais, pessoas trans, e os demais “diferentes”. É na diferença que brota a violência movida pelo medo que provoca no agressor. Dedicaremos um artigo ao tema medo, fenômeno muito rico de significados, e muito mal tolerado.
A brutalidade dessas violências atinge hoje níveis, até então, inimagináveis. Ter as duas pernas amputadas aos 31 anos porque um homem, um ex, ficou com raivinha de ciúme, atropelou e arrastou essa mulher, ralando no asfalto, enganchada no chassi do carro em velocidade, é de crueldade extrema. Não foi planejado em sua amplitude, mas não há freio possível para parar a violência iniciada, mas que não media consequências.
Existe uma forma de Feminicídio Continuado, invisibilizado para todos, de intensa sordidez. É o Feminicídio Continuado Patrimonial. Em poucos segundos, meu pensamento é povoado de mais de 10 mulheres que foram transformadas em terra arrasada. E todas foram, por mim, acompanhadas de perto. Vi a degradação de suas vidas como o terreno rachado do sertão, desidratado por anos e anos de seca. Assim também acontece com as mulheres/mães que ousam denunciar um representante masculino.
Quando falamos de Feminicídio Continuado Patrimonial não estamos nos referindo a mulheres que fazem parte do grupo de grandes fortunas. São profissionais de várias áreas, várias muito bem-sucedidas, trabalhadoras. No entanto, não conseguem fazer frente à avalanche de processos e determinações judiciais de perícias e laudos exigidos, na grande maioria pagos no privado, porque o juízo manda e escolhe o profissional. A alegação dessas escolhas está sob o critério de ser “pessoa de confiança”. “De confiança”? Os profissionais que não seguem a seita vigente da mãe louca, e que dão crédito à voz da Criança, como manda a Lei, são, frequentemente, alvos de depreciação no meio. Em grau menor, mas é um ataque que mina a reputação das profissionais sérias e éticas. Diria, um esboço de Feminicídio Continuado da Reputação profissional. Também uma violência patrimonial.

Quando me deparei, pela enésima vez, com a falência severa de mais uma mãe, lembrei de um cálculo feito por outra mãe, também arrasada afetiva e financeiramente, que me relatou que somando, grosso modo, os montantes de gastos com esses “seriais processos”, dariam para comprar um apartamento de três quartos em bairro da zona sul do Rio de Janeiro, o que estaria completamente fora de suas possibilidades reais. E não faziam parte de seus projetos porque estavam inalcançáveis. Mas, precisou gastar e pedir empréstimos para não ser condenada e presa na inversão de negação de crime hediondo cometido contra o filho. O crime foi travestido em conflito familiar, apelidado, por uma agente judiciária, de “picuinha” contra o pobre criminoso contumaz.
Fazendo parte desse pacote de gastos compulsórios, aparecem a exigência, feita pelo Juízo, de Avaliações psicológicas e psiquiátricas, estas incluindo determinação judicial de tratamento medicamentoso, acrescido de Relatórios Periódicos, violando o Princípio da Confidencialidade, inerente ao exercício do acompanhamento psicológico. A coerção é explícita e resta escrita nas milhares de folhas dos autos. Sem cerimônia.
Esmagadas pelas ameaças, as veladas e as explícitas, inclusive com o anúncio da retaliação pela “desobediência” à ordem do juiz, ou da juíza, maioria, as mulheres vão sendo assassinadas em processo de tortura. Não é porque foi apontada uma causa mortis sob o manto da organicidade que a morte tenha sido natural. Os órgãos, os sistemas abrem falência ao cabo de anos de pressão extrema. Ou alguém pensa que ficar sob regime de tortura silenciosa e contínua tem resultado em benefício ou inócuo? E, a partir daí, com dois agressores: o que cometeu as violências e a instituição, cumprindo uma violência vicária.
De relance, lembrei de nove mulheres arrasadas pelo Feminicídio Continuado. Sem nenhum esforço, me chegaram os absurdos que tentam justificação para a barbárie, com concentração dirigido ao exercício da Maternidade. Violência Institucional, Violência Vicária. Se hoje, considerando os anos, mais de dez, de tentativas de desfazer um instrumento letal legalizado de violência, finalmente, depois de quase 50 tentativas conseguimos votar a Revogação da LAP, temos consciência que foi só um capítulo nessa restauração social necessária.

Não devemos ser ingênuos ou omissos nesse campo das violências contra mulheres e crianças. Quando mais uma vez, a morte chega, prematuramente, e carrega uma companheira, ou quando recebemos mais um pedido de ajuda financeira por total estrangulamento patrimonial de uma mulher/mãe, tomamos um forte jato de impotência na cara. Se a morte, em sua irreversibilidade, abre o espaço para a homenagem, para os elogios, para os choros, sei que o pedido de ajuda é a superação do sentimento de humilhação sofrido, misturado ao sentimento de confiança na compreensão empática das companheiras. Ele é o “levanta, sacode a poeira”, como cantamos a reação ao tombo. E são muitos tombos nesse caminho do Feminicídio Continuado. Como falei antes, a lei emboscada nasce e se alimenta de misoginia, temperada com muita crueldade, paga com vidas de mulheres e crianças. Por bala, faca, machadinha, fogo, ferragem de um carro, mas também por violências mais sofisticadas e invisibilizadas que, igualmente, rasgam o coração, o Feminicídio é uma tragédia endêmica que urge combater, efetivamente.












