Saúde

Por que um sistema nacional de saúde é o ideal para lidar com a pandemia

A disseminação do novo coronavírus pelo mundo evidencia os modelos de saúde pública mais eficientes para atender a população — e o SUS é um deles. Entenda por quê

O primeiro ranking mundial de segurança de saúde, que avaliou o quão preparados 195 países estão para uma eventual catástrofe sanitária, colocou os Estados Unidos no topo da lista. Divulgada em 2019, a análise levou em consideração a capacidade dos países de prevenir, detectar e responder às ameaças, além do comprometimento com normas internacionais, vulnerabilidade aos riscos e capacidade de atendimento.
Um ano depois, a crise provocada pelo novo coronavírus mostrou que o país, na realidade, não estava preparado. Com o maior número de casos atualmente (mais de 200 mil), a previsão é de que em regiões como a área metropolitana de Nova York o surto pode ser pior do que em Wuhan, na China, e na região da Lombardia, na Itália, que registraram o maior volume de casos no mundo até então. Wuhan, onde tudo começou, teve quase 51 mil casos, uma taxa de 4,59 por mil habitantes; a Lombardia tem quase 35 mil, ou 3,48 por mil habitantes; e Nova York já tem 43 mil, ou 2,15 a cada mil habitantes — com um agravante: maior dificuldade em achatar a curva do que as outras cidades.
O que deu errado? O relatório provavelmente subestimou os efeitos que a ausência de um sistema nacional de saúde podem ter durante uma epidemia. “Em vez de um sistema público de saúde, temos um sistema privado que visa o lucro, voltado para indivíduos sortudos o suficiente para pagá-lo, e um sistema de seguridade social instável para pessoas sortudas o suficiente de ter um emprego”, escreveu no jornal The Guardian o ex-secretário de trabalho Robert Reich, professor de políticas públicas na Universidade da Califórnia em Berkeley, nos EUA.
Ao contrário de outros países desenvolvidos, os Estados Unidos são os únicos sem um sistema nacional de saúde ou um sistema de seguro público com cobertura universal. Por lá, 27 milhões de pessoas não têm qualquer tipo de cobertura, e pelo menos 33% da população evitam buscar tratamento médico por causa do alto custo. O assunto não é novidade, e uma reforma no sistema é um dos principais motes da campanha de Bernie Sanders, pré-candidato Democrata à presidência. Foi também um dos principais legados do ex-presidente Barack Obama, que conseguiu criar um plano de saúde privado obrigatório na tentativa de ampliar o acesso da população à saúde, o Obamacare.

Nos EUA 27 milhões de pessoas não têm qualquer tipo de cobertura, e pelo menos 33% da população evitam buscar tratamento médico por causa do alto custo

Efeito cascata

Os problemas começaram justamente pelas barreiras no acesso à saúde: com medo das cobranças e sem uma rede de apoio (a maioria dos empregados não tem direito a licença paga em caso de doença), os americanos não buscaram cuidados no início da pandemia. Mesmo com o anúncio de que o governo irá cobrir os custos de testagem para os pacientes do Medicare e Medicaid (os dois principais programas federais de saúde do país), a incerteza com as contas é uma preocupação a mais em meio ao surto.
Há relatos de americanos que foram evacuados de Wuhan e isolados pelo próprio governo e, quando liberados, foram surpreendidos por cobranças que chegaram a quase US$ 4 mil. Em um país no qual 40% da população afirma não ter reservas o suficiente para cobrir uma emergência de US$ 400, segundo um relatório de 2019 do Federal Reserve System (FED), essa quantia podem levar uma família à falência.
O efeito cascata gerado pela demora em buscar atendimento pressiona ainda mais um sistema hospitalar já frágil. Em vez de correr para a emergência, a recomendação das autoridades de saúde nos Estados Unidos é que, ao apresentar sintomas de Covid-19, o paciente busque primeiro os cuidados de um médico de atenção primária. Acontece que esse tipo de profissional é raro por lá: existem cerca de três clínicos gerais ou médicos de família para cada 10 mil pessoas. Para se ter uma ideia, esse número é de 7,5 no Reino Unido, nove na França e 13 no Canadá.
A tendência, então, é a população só buscar atendimento quando os sintomas se agravarem — e os hospitais não estão prontos para isso. A estimativa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de que o país tenha 3,4 leitos de UTI por mil habitantes. Outra estimativa, essa feita pela Universidade Johns Hopkins, é que existam hoje 46.500 leitos de UTI — em um cenário moderado da crise, 200 mil pessoas precisariam dos cuidados intensivos.
Para completar, por se tratar de um modelo privado, a distribuição é muito desigual, visto que é pouco lucrativo para hospitais manter leitos em regiões com pouca demanda em situação normal. Também há dificuldade de padronizar e integrar os serviços de saúde, pois cada hospital é uma empresa que determina suas próprias regras.

Médico de atenção primária é raro por lá: existem cerca de três clínicos gerais ou médicos de família para cada 10 mil pessoas. Para se ter uma ideia, esse número é de 7,5 no Reino Unido, nove na França e 13 no Canadá

O Brasil de antigamente

“O sistema de saúde dos EUA parece o do Brasil antes da implantação do SUS”, analisa o médico sanitarista Gastão Wagner, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que foi presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) entre 2015 e 2018. Até a criação do Sistema Único de Saúde, em 1988, o setor era organizado separando as ações de saúde pública — que englobavam vacinação, controle de epidemias e regulamentação de remédios — das ações de assistência médica-hospitalar, que era privada ou garantida a quem tinha emprego. Em outras palavras: o Estado fornecia vacina contra a varíola, mas se a pessoa fosse acometida pela doença, precisaria buscar atendimento privado.
“A saúde não era reconhecida como direito”, pontua o médico Jairnilson Silva Paim, professor da Universidade Federal da Bahia e especialista em saúde coletiva. “Parte significativa da população era considerada indigente, sendo atendida na medida do possível pela filantropia e por serviços públicos como hospitais universitários”.
Embora existissem institutos vinculados à Previdência Social que atendiam trabalhadores com carteira assinada, isso estava longe de ser o suficiente: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o País tinha, na época, cerca de 7,1% de desempregados, sem contar os trabalhadores informais. Nos anos 1970, a mortalidade infantil era de 120,7 a cada mil nascimentos vivos (atualmente, é de 12,4). Uma epidemia de meningite fez o País parar, inclusive obrigando a transferência dos Jogos Pan-Americanos de 1975, que seriam em São Paulo, para a Cidade do México. “Era o período da ditadura, em que a economia crescia, mas a desigualdade social não diminuía”, diz Wagner.
Isso começou a gerar indignação. Segundo o professor, era comum pessoas morrerem de apendicite, por exemplo. “Mas a população começou a saber que se tratava de uma cirurgia simples”, relata. A crise deu origem ao movimento da Reforma Sanitária Brasileira, que teve a participação de estudantes, segmentos populares, professores universitários, sindicalistas, setores da igreja católica, entre outros.
Em 1986, com o fim da ditadura, a 8ª Conferência Nacional de Saúde reuniu pela primeira vez as diferentes esferas da sociedade para definir políticas gerais de saúde. Dali, saiu o projeto que foi levado à Constituinte e transformado no SUS na Constituição de Federal de 1988.

Uma das vantagens do SUS é sua capilaridade em praticamente todo o território nacional, além de ser público e gratuito

Direito de todos, dever do Estado

Hospital com pacientes infectados pelo novo coronavírus (Foto: Mohsen Atayi/Wikimedia Commons)

Com a nova constituição, a saúde passou a ser encarada como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Cabe lembrar que falar em saúde não diz respeito somente à assistência médica direta recebida em hospitais ou clínicas: é manter uma atenção contínua que vai desde a qualidade da alimentação da população (papel desempenhado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, vinculada ao SUS) até a prevenção de doenças com a imunização em larga escala. “Sabemos que 80% dos problemas de saúde não precisam de um especialista ou de um hospital são melhor resolvidos com equipes multidisciplinares de atenção primária”, explica o professor da Unicamp.
A inspiração do o nosso sistema de saúde vem da Inglaterra, que implantou no pós-guerra, em 1948, o Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês). “São projetos que determinam que a saúde vai ficar fora da lógica de mercado, mesmo em um país capitalista”, explica Wagner. Não seguir a lógica de mercado e centralizar a gestão do sistema no Estado é interessante para manter um padrão de qualidade e integração, na opinião do especialista.
Em um País de dimensão continental como o Brasil, no entanto, é também particularmente desafiador organizar os cuidados a mais de 200 milhões de pessoas espalhadas por cinco mil municípios. “Uma das vantagens do SUS é sua capilaridade em praticamente todo o território nacional, além de ser público e gratuito”, explica o professor Paim. “A disponibilidade de um sistema de vigilância em saúde competente e a atuação integral, como a que se realiza pela estratégia de saúde da família e de algumas redes assistenciais, são importantes especialmente em momentos de epidemia”.

Nos últimos dez anos, o País perdeu 40 mil leitos do SUS, e a aprovação da Emenda Constitucional 95, em 2016, congelou os recursos para a saúde por 20 anos — nos últimos quatro anos, o sistema perdeu R$ 20 bilhões, segundo o Conselho Nacional de Saúde

Não há retorno sem investimento

Isso significa que ter um sistema nacional de saúde é o segredo para o combate ao novo coronavírus? Não necessariamente. A começar pelo próprio SUS: se a situação se agravar, faltarão leitos de UTI. O Brasil tem hoje cerca de 47 mil leitos, divididos meio a meio entre o sistema público e privado. O problema é que 75% dos brasileiros dependem do SUS, e somente 25% têm planos de saúde. Na prática, isso significa que existe um leito no SUS para cada 10 mil habitantes e 4,84 no sistema privado. A Itália, que tem um modelo bastante parecido com o nosso, não conseguiu frear a disseminação do vírus e viu o sistema (que, segundo a OCDE, tem 1,2 leito de UTI por mil habitantes) entrar em colapso. Por lá, as vítimas de Covid-19 passam de 115 mil.
Mas os problemas estruturais do SUS parecem muito mais fruto de anos de políticas de subfinanciamento do que do modelo em si. Logo no início, nos anos 1990, o projeto foi prejudicado por um contexto adverso às políticas públicas e pela falta de interesse em seu desenvolvimento. Desde então, influenciado por políticas partidárias locais, o modelo sofre com a falta de continuidade na sua implementação, que pode variar a cada governo.
Isso se reflete em um ponto crucial: o orçamento, que é metade do mínimo para funcionar, segundo o professor da Unicamp. O Brasil investe 8,3% de seu PIB em saúde, dos quais pouco mais de 3% são investimentos públicos. Um levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgado em 2018 revela que existe uma grande defasagem nos gastos públicos per capita com saúde, sem reajustes que superem a inflação. Enquanto o valor per capita atual é cerca de R$ 1.300, pela estimativa do CFM o valor correto, com reajuste, seria de R$ 1.800. Nos últimos dez anos, o País perdeu 40 mil leitos do SUS, e a aprovação da Emenda Constitucional 95, em 2016, congelou os recursos para a saúde por 20 anos — nos últimos quatro anos, o sistema perdeu R$ 20 bilhões, segundo o Conselho Nacional de Saúde.

O SUS tem que estar no coração e na mente dos brasileiros, apesar dos seus problemas”, diz o professor Wagner. “Isso nunca foi tão dito como agora, com o novo coronavírus. É a primeira vez que vejo um ministro da saúde vestido com um uniforme do SUS, por exemplo. Essa é uma mensagem bem importante para a população”
Cartão nacional do SUS (Foto: Reprodução/cartaodosus.info/)


A Itália tem experimentado uma situação parecida: desde 2010, a saúde perdeu € 37 bilhões, afetando a operação dos hospitais e, principalmente, os profissionais da área, que têm enfrentado piores condições de trabalho. Entre os países europeus, é um dos que menos investe na saúde pública, com 8,8% do PIB dedicado à saúde, dos quais 74% são investimentos públicos (ou 6,5% do PIB). O número é menor que a média europeia, de 9,8%, com pouco mais de 8% de investimentos públicos.
No caso do SUS, a falta de investimentos dificulta a superação de falhas há muito observadas por especialistas e escancaradas pela pandemia do novo coronavírus, conforme elenca o professor Paim: falta de plano de carreira, ausência de uma gestão profissionalizada (os cargos de gestão são comissionados), além de pouco apoio para mudanças dos modelos de atenção e organização de redes assistenciais.
Mesmo assim, ter um sistema nacional de saúde estruturado é uma vantagem em momentos de crise como em uma pandemia. Não à toa, Coreia do Sul e Japão, ambos com sistemas públicos de saúde, têm sido apontados como exemplo no combate ao novo coronavírus. Os países asiáticos têm 12,27 e 13,05 leitos por mil habitantes, respectivamente, e dedicam 8,1% e 10,2% de seus PIBs. No Japão, 83% dos investimentos são públicos, e o país está na lista dos que menos têm gastos privados em saúde do mundo.
“O SUS tem que estar no coração e na mente dos brasileiros, apesar dos seus problemas”, diz o professor Wagner. “Isso nunca foi tão dito como agora, com o novo coronavírus. É a primeira vez que vejo um ministro da saúde vestido com um uniforme do SUS, por exemplo. Essa é uma mensagem bem importante para a população”. Com mais de sete mil casos confirmados e quase 300 mortes, estamos longe de cantar vitória contra o vírus. Mas, na visão do especialista, sem um sistema nacional de saúde a tragédia seria muito maior: “seria apocalíptico”.

Fonte: Galileu.com

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