‘Pixinguinha, um Homem Carinhoso’: novo filme refaz trajetória de gênio da MPB
A vida e a obra do músico chegam às telas de cinema em um novo filme estrelado por Seu Jorge
Pixinguinha voltava para casa, tarde da noite, quando foi assaltado. Com uma faca, o meliante ameaçou: “Bico calado! Passe a carteira”. Pixinguinha argumentou: “O que é isso? Sou apenas um músico”. Nisso, o assaltante reconheceu a vítima: “Peraí, o senhor não é…”. E começou a cantarolar: “Meu coraçãããão…”.
“Sou eu mesmo!”, respondeu o artista, abrindo um sorriso. “Muito prazer!”. E o convidou para ir até sua casa, comer galinha assada e tomar cerveja. “Nunca assaltei alguém tão gente boa”, exclamou o assaltante, antes de se despedir.
“Pixinguinha era um doce de pessoa, um ser humano sem igual, desses incapazes de falar mal de alguém”, descreve o historiador André Diniz, autor de Pixinguinha — O Gênio e o Tempo (2012) e Pixinguinha — Um Perfil Biográfico (2022).
“Não à toa, Vinícius costumava dizer: ‘É o melhor ser humano que conheço. E que o que eu conheço de gente não é mole…'”.
A vida e a obra de Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pixinguinha (1897-1973), ganhou as telas de cinema em 11 deste mês. Em Pixinguinha — Um Homem Carinhoso, escrito por Manuela Dias e dirigido por Denise Saraceni, quem interpreta o personagem-título na fase adulta é o cantor e ator Seu Jorge, atualmente em cartaz com outra cinebiografia: Marighella, de Wagner Moura. Na juventude, o protagonista é interpretado por Danilo Ferreira. “É muito complexo fazer um personagem que, aparentemente, não tem conflito nenhum”, admite Seu Jorge. “Ainda mais sendo uma figura como o Pixinguinha, que era querido e amado por todo mundo”.
Se interpretar um dos maiores nomes da Música Popular Brasileira não foi nada fácil, transpor sua biografia para o cinema não fica atrás. O produtor Carlos Moletta levou 15 anos para realizar o sonho de contar a história de Pixinguinha. Houve uma primeira tentativa de filmagem em 2013, por ocasião do aniversário de 40 anos da morte do compositor, mas o projeto não saiu do papel. Em 2016, a diretora Denise Saraceni convidou a roteirista Manuela Dias para condensar o material existente e, a partir dele, escrever um novo roteiro. Foi Dias, aliás, quem sugeriu o nome de Seu Jorge para o papel principal. Argumentou que, para interpretar um gênio da música, não podia ser apenas um ator, precisava ser alguém do ramo.
Quem morre dentro de igreja vira santo
Durante a captação de recursos, Saraceni chegou a ouvir de investidores que não podiam patrocinar um filme sobre um alcoólatra. “A história desse filme dá uma novela”, suspira a diretora. “Parece que São Pixinguinha não queria o filme que estávamos fazendo”.
O alcoolismo do personagem é abordado em sua mais famosa biografia: Pixinguinha — Vida e Obra (1978), de Sérgio Cabral. “Pixinguinha viveu uma fase difícil na primeira metade da década de 1940”, escreve o jornalista e escritor. “Trabalhando pouco e gastando muito com o álcool, começou a atrasar o pagamento das prestações”, completa, referindo-se à casa que Pixinguinha comprou em Ramos, em 1939.
Boêmio, o músico chegou a ter mesa cativa no Bar Gouveia, no Centro do Rio, que frequentava de segunda a sexta, das 10h às 13h.
Quem também faz parte do elenco de Pixinguinha — Um Homem Carinhoso é Taís Araújo. A atriz dá vida a Albertina Nunes Pereira, a Betty — pronuncia-se Betí. Ela e Pixinguinha se conheceram em 1926 e viveram juntos até a morte dela, em 7 de junho de 1972, aos 73 anos.
Vítima de problemas cardíacos, Betty foi internada no Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (IASERJ) em maio de 1972. Durante sua internação, Pixinguinha sofreu um princípio de infarto e deu entrada no mesmo hospital. Quando queria visitá-la, trocava o avental da unidade pelo seu melhor terno. “Queria que ela pensasse que estava vindo de casa”, explica Diniz.
Em 1935, o casal, que não podia ter filhos, adotou uma criança e deu a ela o nome de Alfredo da Rocha Vianna Neto. A cena favorita do ator e cantor Marcelo Vianna é a que mostra o avô interagindo com o filho ao piano e comparando a mistura de raças às teclas pretas e brancas do instrumento.
“Meu pai tocava piano e a hora do estudo era sagrada. Quando errava alguma nota, o vô gritava da cozinha: ‘É bemol, Alfredinho, é bemol!'”, recorda o neto de Pixinguinha. “Os olhos do papai brilhavam toda vez que ele falava da facilidade do vô em fazer música. Produzia em larga escala”. Alfredo da Rocha Vianna Neto, o Alfredinho, morreu em 2003.
O filme Pixinguinha — Um Homem Carinhoso abrange a vida do músico desde 1897, quando ele nasceu no bairro da Piedade, zona norte do Rio, até 1973, quando, na tarde de 17 de fevereiro, morreu na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, após sofrer um infarto fulminante. Faltando dois sábados para o carnaval, Pixinguinha fora convidado para ser padrinho de batismo do filho de um amigo. Do lado de fora da igreja, quando soube da morte do compositor, a Banda de Ipanema, em ensaio pré-carnavalesco, começou a tocar Carinhoso em sua homenagem.
Nome artístico nasceu de apelido de infância
Alfredo da Rocha Vianna Filho virou Pixinguinha em 1914, quando registrou pela primeira vez uma música de sua autoria: o tango Dominante. Na partitura, ao lado de seu nome de batismo, o apelido Pizidin. Seu nome artístico, aliás, nasceu da fusão de dois apelidos de infância: “Pizidin”, dado por uma prima, Eurídice, que significa “menino bom”, e “Bexiguinha”, o nome popular da varíola.
Sua vida é repleta de pequenas controvérsias. A começar pela data de seu nascimento. Oficialmente, Pixinguinha teria nascido no dia 23 de abril de 1897. Mas, segundo levantamento feito pelo pesquisador Alexandre Dias, colaborador do Instituto Moreira Salles (IMS), no cartório onde o pequeno Alfredo da Rocha Vianna Filho foi registrado, a data correta é 4 de maio.
“Especula-se que o pai do Pixinguinha tenha esquecido de declarar o nascimento do filho no prazo. E mentiu para não pagar multa”, pondera a pesquisadora Bia Paes Leme, coordenadora de Música do IMS, instituição que, desde 2000, abriga nove mil itens do acervo Pixinguinha. “Há desde as penas que ele usava para escrever os arranjos até a última flauta que tocou. No entanto, o item mais valioso são as partituras”. No site, sua obra está dividida em quatro categorias: música de Pixinguinha, indevidamente atribuída, autoria não confirmada e música incompleta, perdida ou inexistente.
Outra incorreção diz respeito ao verdadeiro autor da valsa Rosa, gravada e regravada por grandes nomes da MPB, como Luiz Melodia (1951-2017), Caetano Veloso e Marisa Monte. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som (MIS), Pixinguinha atribuiu sua autoria a Octávio de Souza, um mecânico do Méier que teria composto sua letra em homenagem à irmã de um certo Moacir dos Telégrafos, um cantor do bairro. Mas, há quem suspeite, por causa do estilo rebuscado da letra, de que tenha sido escrita, na verdade, por Cândido das Neves (1899-1934).
‘Carinhoso’, o hino popular brasileiro, já ganhou 411 versões
Sua canção mais famosa, Carinhoso, foi composta em 1917, quando tinha apenas 20 anos. “A música não fez sucesso”, explica Diniz. “Talvez fosse muito moderna para a época”. No dia 10 de outubro de 1936, a então primeira-dama do Brasil, Darcy Vargas (1895-1968), realizou um espetáculo beneficente no Theatro Municipal do Rio de Janeiro para arrecadar fundos para uma obra social. Sem música inédita para apresentar no concerto, a cantora Heloísa Helena (1917-1999) pediu a Braguinha, o João de Barro (1907-2006), que colocasse versos no choro de Pixinguinha. Assim, nasceu Carinhoso.
“Na primeira parte, a melodia simples, formada por frases de apenas três notas, sustenta uma letra quase ingênua, que descreve um apaixonado flanando pelas ruas atrás de sua musa”, analisa Virgínia de Almeida Bessa, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de A Escuta Singular de Pixinguinha (2010).
“Na segunda parte, a melodia mais elaborada dá vazão a uma letra rebuscada e romântica, cujo ponto alto (“Vem, vem, vem, vem…”) coincide com uma frase melódica ascendente que simula uma conjunção amorosa”.
Duas curiosidades: João de Barro não foi o primeiro a escrever uma letra para o choro. Antes dele, o compositor paulista Benoit Certain bem que tentou, mas não agradou a Pixinguinha. E tem mais. Antes de ser gravada por Orlando Silva (1915-1978) em 1937, a música foi oferecida pelo diretor da gravadora RCA Victor a Francisco Alves (1898-1952) e a Carlos Galhardo (1913-1985) que, por diferentes razões, não quiseram gravá-la.
Atualmente, Carinhoso é a terceira canção mais regravada da MPB. Segundo levantamento do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), tem 411 versões. O samba-exaltação Aquarela do Brasil, de Ary Barroso (1903-1964), tem 414 e a bossa-nova Garota de Ipanema, de Tom Jobim (1927-1994) e Vinícius de Moraes (1913-1980), 413. Gravaram Carinhoso, entre outros, Nelson Gonçalves (1919-1998), João Gilberto (1931-2019), Cauby Peixoto (1931-2016), Elis Regina (1945-1982) e Maria Bethânia.
Além de compositor, Pixinguinha foi também arranjador. Em 1929, foi contratado pela gravadora RCA Victor, onde compôs o arranjo para incontáveis marchinhas de carnaval, como Pra Você Gostar de Mim (Taí), composta por Joubert de Carvalho (1900-1977) e imortalizada por Carmen Miranda (1909-1955), e Allah-lá-ô, parceria de Haroldo Lobo (1910-1965) e Antônio Nássara (1910-1996) gravada por Carlos Galhardo.
“O que mais me chama a atenção na obra de Pixinguinha é sua incrível modernidade”, elogia Bessa. “Incorporou elementos de diferentes tradições musicais, do jazz à rumba. Era um artista criativo, moderno e de ouvidos atentos ao que acontecia ao seu redor”.
Foto de capa: David Drew Zingg/Acervo IMS/BBC News Brasil
Fonte: BBC News Brasil