Comportamento & Equilíbrio

Precisamos falar sobre Moïse e Henry — Parte I

Precisamos falar sobre xenofobia e xenofilia que caminham juntas na nossa sociedade. Conjugadas, a importação de teses sem fundamento, fazem grandes estragos

A barbárie alvejando a vulnerabilidade em 32 pauladas ou em 23 lesões num corpo ainda de pequenas dimensões. O fígado lacerado e a infiltração de três lobos cerebrais. Contusões de grande impacto. Joanna, também, só tinha cinco anos de crescimento, e carregou para seu túmulo as inúmeras lesões, marcas de queimaduras de cigarro e equimoses, uma profunda queimadura nos dois lados dos glúteos que intrigavam como teria sido realizada. A hemorragia cerebral que foi escrita sob outro nome ao ser dita como causa mortis.
Bernardo foi até o Fórum de sua cidade pedir socorro ao Promotor e ao Juiz, que achou melhor chamar o pai, em acareação, como numa audiência de conciliação, o que está escrito nas Convenções Internacionais, às quais o Brasil é signatário, que não deve ser buscada. O país ratifica uma Recomendação Internacional, que adquire, portanto, status de lei, mas depois descumpre. Bernardo, após a acareação com a promessa de promoção de melhor convivência familiar, foi assassinado, em menos de um mês, pelo pai e a madrasta, e enterrado ainda com vida. A crueldade com os vulneráveis não tem limites.
Isabella foi espancada e jogada pela janela como se fosse uma guimba de cigarro que se imagina não vá cair em algum chão. É a ilusão de fazer desaparecer uma coisa que não tem mais utilidade. À menina, em sua existência, apenas aguçava o desejo de fazer sumi-la. Se a criança não se adequa a uma “inexistência serviçal”, coisa bem difícil de ocorrer, ela deve ser eliminada. E, assim, adultos, que pertencem a degraus primitivos de uma escala pré-animal, alimentados pela Cultura da Impunidade, realizam esses seus impulsos mais do que cruéis.

Montagem com Joanna Marcenal, Bernardo Boldrini, Isabella Nardoni, Daniela Perez e a juíza Viviane do Amaral Arronenzi (Foto: Reprodução/F&N)

A magistrada, juíza, ameaçada de tomar a conhecida “tarja preta” do Direito de Família, a perene e incontestável alegação de ser “alienadora”. Teve muito medo de cair nesse gueto sem saída e cedeu, cedeu, cedeu, até que no Natal, ao entregar as três filhas para o pai, tomou dele 16 facadas na frente dessas crianças de menos de nove anos. Nem a toga serve de proteção ou de impedimento para a violação do Direito à Vida. A visão infernal, sangrenta, da morte da mãe pelo pai, as repetidas facadas, vai habitar para sempre a mente dessas meninas. É assim com os Feminicídios, mais especificamente, com os Maternicídios, quase todos acontecem dentro de casa, diante das crianças do casal ou ex-casal.
Já até esquecemos da crueldade que tirou a vida da Daniela Peres. Dissimulação em mistura com uma violência atroz, comungada por duas pessoas que acreditavam terem concebido um crime perfeito com matizes de obscurantismo, e impulsionado por emoções que costumamos classificar como negativas.

O menino Henry Borel de Medeiros tinha quatro anos quando foi morto (Foto: Reprodução)

Às vezes a crueldade se faz por uma única bala que, durante uma discussão barulhenta, que vizinhos referem como ocorrência frequente, mata mãe e bebê ainda no ventre. A justificativa vem com “tiro acidental”. Vizinhos também tinham conhecimento das agressões sofridas por Henry. Familiares, idem. Esta cumplicidade com o agressor é respaldada na alegação do não se meter na vida dos outros. Interessante, ou curioso, é que o julgar o outro é talvez o que mais é feito, com tamanha arrogância que, todos parecemos experts de tudo. Já se foi o tempo que o brasileiro se achava o melhor técnico dos times de futebol. Hoje, isso vale para todos os campos sociais.
Chocados, descobrimos que uma mulher quase de terceira idade, vivia em sistema de escravidão, a de trabalho, a sexual. Ela assume várias formas bem diversas. O colonialismo parece um ranço que não nos larga. A escravidão de Crianças e Mulheres encontra nessa condição de vulnerabilidade, a possibilidade de se repetir, com troncos equivalentes. Crianças que são entregues a seus pais abusadores, por sentença judicial, são tornadas escravas sexuais. Mulheres que não têm rede de apoio, não vale a do papel, a publicitada em campanhas até emocionantes, para sair do ciclo da opressão, são olhadas como culpadas de suas próprias dores.

Justiça por Moïse: Protesto em São Paulo (Foto: Nelson Almeida/AFP)

Nosso País ocupa os primeiros lugares entre os países do mundo todo, em itens que só causam vergonha. A violência que viola Direitos, os mais básicos. E evidencia defeitos estruturais que parece não evoluir. O racismo, a xenofobia, motivaram a barbaridade de um ódio inimaginável. Em plena via pública, com pessoas que viram, com agentes de segurança oficiais que não quiseram ver, um taco de baseball desferiu 32 golpes contra uma pessoa indefesa que falava diferente. Quem era o dono do taco de baseball? Existe alguma quadra ali perto do quiosque da praia onde estava guardado? O tal amante de baseball sabe as regras desse jogo?
O grito é por Justiça. Mas a punição pontual, se é que acontecerá, não chega nem a arranhar o que é estrutural e sólido, e habita em proporções variadas, mas habita nossas mentes em seus recôncavos mais profundos. A omissão também é uma violência. Urge que inauguremos uma Cultura do Respeito ao Outro.
Precisamos falar sobre xenofobia e xenofilia que caminham juntas na nossa sociedade. Conjugadas, a importação de teses sem fundamento, fazem grandes estragos.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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