Livro mostra como o nazismo funcionou como uma ‘revolução cultural’ que permitiu horror na Alemanha
Escrito pelo professor da Sorbonne Johann Chapoutot, obra conta a versão nazista para as transformações da Alemanha durante a dominação do partido
Por João Marcos Coelho
É preciso coragem para dedicar um livro ao nazismo e ainda intitulá-lo A Revolução Cultural Nazista. Johann Chapoutot, 44 anos, historiador e professor na Sorbonne Nouvelle, em Paris, é o autor da proeza, em seu precioso livro de 2017, lançado no Brasil pela Livraria Editora Da Vinci no final do ano passado.
Ele parte, oito décadas depois, das palavras usadas por Primo Levi para descrever o Dr. Panwitz, em plena Segunda Guerra Mundial, no campo de extermínio que virou sinônimo do horror nazista, Auschwitz. Químico, o prisioneiro havia sido destacado para assisti-lo num projeto de fabricação de combustível sintético: “Seu olhar não era o olhar de um homem para outro homem; e se eu fosse capaz de explicar verdadeiramente a natureza desse olhar que parecia trocado por trás do vidro de um aquário, entre dois seres pertencendo a dois mundos diferentes, estaria explicando a própria essência da loucura do III Reich”.
As reflexões sobre a organização do trabalho, otimização dos fatores de produção, por uma sociedade produtiva mais eficiente foram numerosas e intensas durante o III Reich”, escreve. Mestres e estudantes fizeram do Serviço de Ensino da SS seu ninho “think tank”.
Reinhard Höhn[1904-2000], diz Chapoutot, “é o arquétipo deste intelectual tecnocrata”. Ele é um dos cerca de 6500 membros da SS que fortaleceram uma “rede poderosa” de apoio mútuo espalhada no ‘management’, na universidade, no mundo jurídico e na economia mundo afora.
Em 1953, Höhn era diretor da Sociedade Alemã de Economia Política que pesquisava os métodos de administração mais eficazes. A tal Sociedade acabou criando uma escola de comércio para formar “os novos quadros econômicos”.
Meta declarada: “Desenvolver e ensinar as formas de gestão de recursos humanos mais adaptadas ao nosso tempo”. Meta real: formar “managers” à americana, “líderes polivalentes”. Ou seja, “diferentes dos especialistas doutores nisso ou engenheiros daquilo que pululam na Alemanha desde o reinado de Guilherme II. O modelo é a Harvard Business School”. Assim nasceu a escola em Bad Harzburg, com um corpo docente basicamente formado por ex-nazistas da SS. O lema: “Liberdade para obedecer, obrigação de ser bem-sucedido”. Indisfarçavelmente nazistoide. Chapoutot vai na mosca ao afirmar que “ele mostrou-se perverso, tão perverso quanto um (antigo) nazi celebrando a liberdade”.
Ex-alunos da Escola de Formação de Profissionais de Administração na Alemanha em Bad Harzburg ocuparam — depois de desnazificados pelo Tribunal dos Aliados no imediato pós-guerra em 1945/47 — cargos de direção em grandes grupos empresariais que você conhece: Hoechst, BMW, Bayer, Telefunken, Krupp, Opel, e também nas norte-americanas Ford, Hewlett-Packard e Colgate. Todas estas e outras empresas “enviam regularmente seus executivos para aprender as boas lições dos antigos SS”, escreve Chapoutot.
A conclusão do livro de apenas 176 páginas é aterradoramente atual: “Disciplinar mulheres e homens considerando-os como simples fatores de produção e devastar a Terra, concebida como um simples objeto andam de mãos dadas. Levando a destruição da natureza e a exploração da “força vital” a níveis sem precedentes, os nazistas aparecem como a imagem distorcida e reveladora de uma modernidade enlouquecida — servida por ilusões (a ‘vitória final’ ou a ‘recuperação do crescimento’) e por mentiras (‘liberdade’, ‘autonomia’) das quais pensadores de gestão como Reinhard Höhn foram os hábeis artífices”.
Fonte: Terra