Operações policiais com data marcada dão “férias” a criminosos e estruturam facções
GLO levou cerca de 200 militares da Capitania Fluvial ao rio Paraná
Por Juliet Manfrin
Operações Hórus, Fronteira Sul, Ágata e mais recentemente um decreto presidencial de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Todas ações de enfrentamento ao crime organizado que, na visão de especialistas em segurança pública, acabam tendo o efeito de fortalecer, estruturar e sazonalizar o crime organizado. A análise é feita tendo como base a característica comum das operações: dia e hora para começar, além de, em muitos casos, prazo estipulado para o término.
Na região de tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina há agravantes. É considerada uma das mais vulneráveis do país pela entrada de armas, drogas e munições que abastecem facções de Norte a Sul.
Há anos estamos discutindo problemas relacionados à fronteira e parece que continuamos debatendo as mesmas coisas: segurança pública, tráfico de drogas, de armas, facções criminosas”, aponta o presidente do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social de Fronteiras (Idesf), Luciano Barros, que em novembro organizou na cidade de Foz do Iguaçu (PR) o 10º Seminário Fronteiras do Brasil.
Conhecedor dos problemas enfrentados nos quase 17 mil quilômetros de fronteira, Barros considera que entraves transfronteiriços vêm se agravando.
Temos situações importantes de cooperação e integração interagências, mas são muitos os desafios. Não temos condições de linearidade das operações. A gente precisa de um objetivo nacional que ancore todas essas ações de forma duradoura”, constata.
Para o especialista, é essencial fazer uma reflexão do legado deixado por estas intervenções. “E na hora que desmobilizar tudo isso, o crime vai voltar? É muito fácil ‘dar férias’ ao crime organizado quando você diz que isso tem prazo determinado. E há o desafio de trabalhar com países vizinhos. São problemas internacionais que perpassam as nossas fronteiras. Esses trabalhos conjuntos são fundamentais”, defende ele.
Além de perenidade das operações de repressão e enfrentamento ao crime organizado, o especialista considera que periférico ao crime existem dilemas a serem sanados que vão além da tríplice fronteira. Eles envolvem, segundo Barros, bases sociais que passam por empregos dignos, sobretudo em cidades que crescem muito em regiões fronteiriças e atraem uma população jovem que busca ser cooptada pelo crime. Pesquisas originadas ou pautadas pelo Idesf percorrem as mãos de um amplo grupo de pesquisadores na academia e na administração pública, com o objetivo de auxiliar na construção de políticas públicas.
Para o vice-reitor Internacional da Faculdade de Ciências Sociais e Políticas Públicas da King’s College London, Vinicius Mariano de Carvalho, que há uma década pesquisa segurança e defesa na América Latina, é indispensável uma sincronia entre as forças de segurança no enfrentamento ao crime e métodos de enfrentamento diferenciados, de acordo com as caraterísticas de cada região fronteiriça.
O pesquisador considera que o que se evidencia entre Brasil e Paraguai são “ações robustas de violência que perturbam as instituições sociais e de Estado, promovendo insegurança e risco às vidas humanas”. Ele pontua que o crime organizado é mais flexível e dinâmico que o aparato oficial.
O crime não tem preocupação de responder a alguém, enquanto o Estado responde a si mesmo, à legislação e à população. É lento e tem uma máquina burocrática, funciona mais fragmentado, mas não é um caso perdido. O Estado precisa se mobilizar de forma mais rápida e coerente para responder à pressão, à agressão e à ameaça que o crime organizado traz à sociedade”, avalia.
Quanto aos crimes em regiões de fronteira, o pesquisador alerta que, por serem transnacionais, uma resposta unilateral é limitada. “É essencial uma cooperação internacional efetiva, que aja de fato e não seja apenas declaratória”. Quanto às ações de combate e controle internos, Carvalho diz é um equívoco pensar em operações datadas em fronteiras de maneira uniforme.
A fronteira entre Brasil e Paraguai é habitada, dinâmica e economicamente forte, então é preciso entender pontos cruciais com abordagens mais específicas. É preciso entender que uma única política para todas as fronteiras não funciona. Temos muitas (áreas de fronteiras) com características diversas”, reforça.
Para o pesquisador, também é fundamental se adequar de forma repressiva à dinâmica criminal. “Isso passa por entender que o nosso modelo de segurança pública vem da Constituição Federal de 1988: estamos notando fragilidades ao longo do espaço de tempo. É preciso reentender, modificar a segurança pública no modelo federativo que adotamos”, completa.
Considerando a atuação de diferentes agentes operadores da segurança pública, o pesquisador analisa que existe troca de informações entre eles, mas que é essencial ter “vontade de fazer”, alertando ser indispensável que as questões em fronteiras devem envolver o Ministério das Relações Exteriores. “Segurança pública não é apenas uma política interna e operadores da política externa precisam ser inseridos nesse problema. Como membro da academia, me cabe essa provocação”.
Enquanto operações pontuais vem e vão nas regiões de fronteira, grupos permanentes e ativos de combate ao crime sofrem com a falta de estrutura. Um dos exemplos é o Comando Tripartite envolvendo forças de segurança, fiscalização e controle do Brasil, do Paraguai e da Argentina.
Tido como um exemplo bem-sucedido, o Comando Tripartite foi instituído em 1996 pelo então ministro da Justiça Nelson Jobim no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Mesmo com ações contínuas, reuniões mensais e trocas diárias de informações, não conta com dotação orçamentária própria nem uma sede física.
A presidência pró-tempore do Comando Tripartite segue até o início de 2024 com o Brasil e é o chefe da Delegacia da Polícia Federal (PF) de Foz do Iguaçu, Marco Smith, quem está à frente dos trabalhos. Durante este ano, segundo o delegado, houve troca de informações envolvendo mais de dois mil documentos oficiais.
Entre as atribuições está o recebimento para ingresso oficial no país de deportados, extraditados ou brasileiros expulsos dos outros países-membros. “Talvez essa seja a ação que dá mais visibilidade ao Comando Tripartite, mas vai além. Desde o início se produz informação e material que pode ser utilizado em juízo em diversas áreas. Tudo que vem do Comando é fruto de cooperação internacional e não são necessários novos pedidos para inserção de documentos vindos dali para fins judiciais”, explica.
O órgão está elaborando um novo protocolo, o que ocorre a cada cinco anos numa renovação de portarias interministeriais com a inclusão de novos eixos temáticos. Desta vez, são casos de roubo e contrabando de veículos. Na região da fronteira, esses crimes patrimoniais são bastante comuns: veículos são levados de um país a outro, onde dificilmente são recuperados. Muitos são usados para ações criminosas subsequentes, como contrabando de cigarros e de eletrônicos, tráfico de drogas e de armas.
O Comando Tripartite conta com um banco de dados integrado em controle de migração, combate à lavagem de dinheiro, à evasão de divisas, ao tráfico de drogas, à investigação e financiamento ao terrorismo, tráfico e contrabando de pessoas, crimes ambientais, cibercrimes e temas correlacionados. “Essa entidade com quase 30 anos não tem uma sede própria. Isso traz vantagens e desvantagens. Entre as vantagens está a celeridade pelas movimentações eletrônicas. Por outro, se perde o contato com os agentes”, pontua. As reuniões mensais ocorrem em locais distintos.
As fronteiras brasileiras estão recebendo duas ações distintas, mas não constantes, de enfrentamento ao crime. Uma delas é a Operação Ágata, desenvolvida desde o ano de 2011 em meio ao Plano Estratégico de Fronteiras (PEF) do governo federal, coordenada pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA). O objetivo, segundo o Ministério da Defesa, é “fortalecer a segurança dos quase 17 mil quilômetros de fronteiras do Brasil. Militares da Marinha, do Exército e da Força Aérea Brasileira realizam missões táticas contra o narcotráfico, contrabando e descaminho, tráfico de armas e munições, crimes ambientais, imigração e garimpo ilegais”, explica a pasta federal.
Participam da ação 13 ministérios e duas dezenas de agências governamentais. O Programa Integrado de Fronteiras, instituído pelo decreto residencial 8.903, de 16 de novembro de 2016, tem como objetivo organizar “a atuação de unidades da administração pública federal para sua execução”.
Na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina, a 15ª Brigada de Infantaria Mecanizada é quem está na coordenação, “intensificando as ações de patrulhamento e controle de rodovias e rios na faixa de fronteira Oeste do estado do Paraná e divisa com o Mato Grosso do Sul”.
São cerca de 800 militares que utilizam equipamentos considerados modernos e o Sistema de Aeronaves Remotamente Pilotadas, em apoio às ações de patrulhamento terrestre e fluvial, postos de bloqueio e controle de vias, com revistas de pessoas, veículos e embarcações.
Somada à operação em curso, em 6 de novembro foi deflagrada a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), determinada pelo governo federal após os ataques protagonizados pelo crime organizado no Rio de Janeiro. Além da fronteira, a GLO é desenvolvida em portos e aeroportos pré-definidos em São Paulo e Rio de Janeiro.
Na fronteira com o Paraguai, em torno de 200 militares da Capitania Fluvial operam pelo rio Paraná, que divide os dois países e tem trechos controlados pelo crime organizado. Há também militares de outros destacamentos cedidos à operação.
Em nota, a Capitania Fluvial destacou que a “GLO é uma medida excepcional de segurança pública que aciona as Forças Armadas para atuar em conjunto com as forças de segurança pública e Marinha do Brasil”. Treze embarcações foram empregadas na ação, algumas com metralhadoras fixas. O efetivo conta com apoio de aeronaves. A região da tríplice fronteira é reconhecidamente uma área ocupada por facções criminosas, quadrilhas de contrabando de cigarros e supostos membros de núcleos terroristas.
Precisamos de ações contínuas nas fronteiras e espero que muitos dos problemas que debatemos hoje nãos sejam mais necessários daqui a 10 anos, que estejamos cada vez mais afinados e que os problemas sejam efetivamente enfrentados a partir de uma legislação consistente e de uma cooperação, inclusive internacional, com ações constantes e eficazes”, defende o presidente do Idesf.
(Foto: Divulgação/Capitania Fluvial do Rio Paraná)
Fonte: Gazeta do Povo