As Macroviolências Sociais contra Crianças e Mulheres — Parte II
Na guerra urbana que vivemos todos os dias, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo as crianças são mártires sociais
Liberar armas afrouxando as leis que fiscalizam e rastreiam seus caminhos em mãos que, sob o falso título de caçadores e colecionadores, apertam o gatilho com rapidez e sob um motivo irracional, é uma violência contra mulheres e crianças. São as mulheres/mães que choram e vão carregar para sempre uma dor insuportável pela perda do filho. Sabemos que é um calo repetir que aquele filho era trabalhador e ótima pessoa. Todas as mães assim os descrevem. Para cada mãe, cada filho seu é ótimo quando ele é atacado de alguma maneira.
Mais ainda quando a filha ou o filho fuzilado é uma criança. Na guerra urbana que vivemos todos os dias, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo, as crianças, como as da Guerra do Oriente Médio, as Crianças de Gaza, as Crianças Israelitas feitas reféns, as Crianças da Ucrânia, as Crianças Sírias, as Crianças Ianomâmis, (nem se fala mais), as Crianças dos países africanos, as que matamos de fome e as que matamos de tiros e mísseis, todas elas são mártires sociais. Nós subtraímos a vida delas em seu início.
Poderíamos acrescentar as crianças que estão morrendo de cânceres plantados nos seus corpinhos por agrotóxicos venenosos, garantidos em uso pela ganância econômica de um pequeno grupo. Seria um cego projeto de necropolítica? Quando liberamos armas de tiro ou venenos agrícolas, não podemos precisar quais crianças vão ter a vida ceifada.
Também a violência doméstica em sua forma de estupro de vulnerável, quando é minimizado e impune, não temos ideia da reverberação daquele crime. A criança violada que não é protegida pela Justiça, pode vir a casar e ter filhos com os filhos ou netos do juiz que inocentou quem a violou. A possibilidade é bem grande. Não porque, como já se pensou outrora, “abusado hoje, abusador amanhã”, mas porque a experiência de opressão e submissão ao juiz na infância, alimenta o desejo inconsciente de se acercar sempre do Poder, das pessoas Poderosas. A opressão é uma via estreita de mão única, dividida em alternância entre opressor e oprimido.
O instinto de humilhar é insaciável. Chamar de instinto pode parecer exagerado, mas é seu caráter permanente que contempla melhor essa conduta que não é tratável. Assim, precisamos pensar esse comportamento de perversidades, muitas inimagináveis para as pessoas comuns, com a infinitude peculiar. Cada vez que você toma conhecimento de um novo caso de estupro de vulnerável, você é surpreendido pela descrição bizarra, bestial, asquerosa, de atos de lascívia que superam qualquer Maquiavel.
Vindo do microcosmo da família, que insistem em chamar de “família de bem”, ou de “lugar seguro”, esses comportamentos, extremamente aberrantes, se desdobram em macroviolências sociais, porquanto a impunidade é cada vez mais estrutural, no desprezo às leis de Proteção Integral à Criança. Fazendo jus ao bom propósito do Princípio do Melhor Interesse da Criança, o ECA contém a excelência da justa legislação. Mas não é obedecido. Uma única lei do ECA impede a Proteção da Criança.
Retomando a hipótese de haver um projeto de necropolítica em curso, dirigido a crianças e mulheres, pensamos que, no exercício desse Poder de determinar quem morre e quem tem direito à vida, os vulneráveis, agora nomeados com o acréscimo das pessoas LGBTQIAP+, e os indígenas, sem nenhum constrangimento ou subterfúgio, escancara-se uma espécie de licença para matar.
Morte por cancelamento virtual da terra sem lei, tão defendida como tal. Morte psicológica pela desqualificação da Voz da Criança, levando-a ao enlouquecimento da Retratação, judicialmente, obrigatória. Morte por tiro de fuzil no quarto dormindo, no escorrega do parquinho, na calçada de casa, no banco de um transporte; todas, Mortes por Violência Social. Leis, existem. E como pode uma menina que gritava — gritos ouvidos pelos vizinhos — foi morta pelo padrasto, hematomas, lacerações de órgãos e abusos sexuais, em repetição similar ao caso de Joanna (2010) e Henry (2021), entre tantos outros. Parece que nada muda. Parece? Assassinatos que todos nós praticamos por ação ou omissão.