Comportamento & Equilíbrio

Direito de Ir e Vir? Se for Mulher, não tem — Parte I

Implícita ou explicitamente, a mulher é o alvo fácil de “treinamento” de milícias sociais. Leis existem, ótimas, mas a quem servem?

Este Direito de Liberdade de Locomoção, em qualquer tipo de território, assegurado pela Constituição Federal, vem sendo violado com estranha frequência. O Direito de Ir e Vir tem aparecido, notadamente, nas matérias jornalísticas que abordam a tomada de governança no apartheid, afetando os vulneráveis sociais. As Milícias disputam com os traficantes, em campo de batalha sangrento e letal, o território apartado das cidades, desamparado pelo Poder Público, como se dele não fizesse parte. Tiroteios diários, melhor dizendo, diuturnos, toque de recolher, invasão e expulsão da própria casa, espoliação por serviços ilegais que se tornam obrigatórios. Todo tipo de humilhação que alimenta uma imensa e absoluta impotência.

Não posso afirmar que é comum a todas as cidades brasileiras. Mas, com certeza está presente, mesmo que em escalas diversas e menores, em todos os lugares, cidades, povoados e campo. Acabou o sossego. A violência é uma epidemia. Talvez possamos chamar de pandemia. Só em guerras — são 29 atualmente — que afrontam todas as Instituições de Pacificação e Justiça, que nós mesmos, os humanos, instituímos. Vemos organização de Paz se reunindo para obter armamento. Para comprar armas. Parece um tanto incongruente.
E, no nosso pedaço geopolítico, onde a transgressão é alimentada todo o tempo, implícita ou explicitamente, a Mulher é o alvo fácil de “treinamento” de milícias sociais. Leis existem, ótimas, mas a quem servem?

Mapa das milícias — Fonte: Mapa Faccional – Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF)/Fogo Cruzado, 2022

Vamos tomar um único direito básico, o Direito de Ir e Vir. Foi assassinada ao sair do trabalho, foi assassinada ao sair de uma festa, foi assassinada ao sair da igreja, foi assassinada ao sair para brincar, foi assassinada porque saiu com as amigas após o término do namoro, foi assassinada porque arrumou novo namorado, foi assassinada porque quis se separar, foi assassinada porque estava no lugar errado e na hora errada. Isso quer dizer que existem “lugares certos” e “horas certas” para se ter o direito de ir e vir? Esse Direito passou a ser relativo a determinadas circunstâncias e não um Direito Universal? Quem dita essas circunstâncias detentoras desse Direito?

São vários os Direitos que estão proibidos à Mulher. Para além do ir e vir, é punida a mulher/mãe que denuncia um genitor, é ceifado o direito patrimonial empurrando a mulher na total imobilidade financeira, é ceifado o direito a progressão profissional que fica atrelado à autorização de ex-marido, pois, na maioria dos casos há um combo de interdições silenciosas de Direitos.

É muito frequente que o agente policial — seguido do entorno de uma mulher que vai buscar proteção pelas Leis, já promulgadas, contra o assédio, a importunação, o estupro, a violência sexual, a violência física — desacredite e, lançando aquela pergunta plena de perversidade, mostre sua curiosidade sobre o que ela fez, ou como estava vestida. Assim como há a negação de abrir um Boletim de Ocorrência, em Delegacia da Mulher, porque ele não está vendo os alegados hematomas decorrentes das pancadas, desconsiderando que, em pele escura, os hematomas não aparecem facilmente. E, se ele não vê, ela está mentindo, mandando que se retire. Aliás, esse é mais um ponto de violência social e institucional, ter o parâmetro da pele clara para comprovação da lesão. É o antigo e famoso, só vendo para crer. Ou seja, a palavra da mulher nada vale, ela é sempre identificada como a louca, a mentirosa, a vingativa, etc., etc., etc.
É sempre uma caça feroz a contradições, a inconsistências, a esquemas de armação contra o pobre homem que espanca e estupra. Não são todos os homens que praticam violências contra mulheres e crianças. Mas os que praticam, e não são exceções, as estatísticas do Feminicídio não nos deixam enganar, são homens que gozam da negligência e da anuência sociais.

Violência contra mulheres ‘Evidências sobre Violências e Alternativas para Mulheres e Meninas’ (EVA)

A culpa de uma investida sexual é sempre da vítima. Ela estava com uma saia curta, ou um decote maior, ou, se estava na rua naquela hora, era porque estava querendo ser estuprada. Alguém quer ser estuprada? Ou estuprado?
As pequenas conquistas de autonomia, construídas pelas mulheres, são esmagadas para mostrar que o Poder continua sendo um atributo masculinista. As Leis não são obedecidas, são interpretadas apontando culpa às mulheres. Até mesmo quando elas são mortas, a culpa foi delas.

Há anos aconteceu um feminicídio, anterior à lei, no norte do país. Um ex-marido matou a ex-esposa na frente do filho, e uma psicóloga contratada por essa parte, genitor, escreveu em seu laudo que o homem assassinou porque ela fazia alienação parental, foi culpa dela e não do atirador. Esse menino cresceu e depois dos 18 anos processou essa psicóloga. Há pouco tempo, a ministra Cármen Lúcia citou o caso de um grande advogado que defendeu a tese de que a mulher se matou usando mãos alheias, ela é que teria “obrigado” ele a estrangulá-la. A mulher teria se matado com os dedinhos do ex-marido. Culpa dela. A ministra demonstrou revolta, educada como é.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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