Após 40 anos de estudos, psicólogo revela o segredo das crianças mais sociáveis

Mais do que notas altas e inteligência, o sucesso das crianças na vida passa pela forma como elas se conectam com os outros. E isso se aprende com tempo, intenção, muita presença e sem pressa — em casa, na escola e longe das telas
Pare por um instante e se pergunte: o que eu mais desejo para o meu filho? Talvez a primeira resposta seja “que ele seja feliz”. Mas o que sustenta essa felicidade, afinal, são os laços com os outros — saber se conectar, ter amigos, sentir que pertence. É essa habilidade silenciosa, que se constrói aos poucos, que acompanha nossos filhos na vida. E que começa em casa, com tempo, intenção e presença.
Quando pensamos em ajudar uma criança a ter sucesso acadêmico ou profissional, já sabemos mais ou menos o caminho das pedras: investir em boa escola, cursos, incentivar o estudo… Mas quando falamos desse sucesso social — que envolve empatia, respeito, segurança emocional — a história fica bem mais complexa.
Não existe um curso de como fazer amigos, uma formação em empatia e muito menos um manual infalível de como ser socialmente aceito. Ensinar a criança a conviver, a entender sinais, a se expressar e a pertencer exige outro tipo de atenção e um esforço que nem sempre é tão óbvio ou tão automático assim. Ainda mais nos dias de hoje.
Apesar de todas as telas e de toda a tecnologia, a geração atual de crianças e jovens está passando por grandes dificuldades psicológicas. E parte do motivo, na minha opinião, é que eles não sabem como se relacionar. Eles não aprenderam as habilidades de comunicação que outras gerações adquiriram para conseguir se conectar com outras pessoas e fazer amigos”, diz Stephen Nowicki, doutor em psicologia e professor emérito da cátedra Charles Howard Candler na Universidade Emory (EUA), em entrevista exclusiva à Crescer.
E essas habilidades a que Nowicki se refere são aquelas que vão além das palavras. Estão no olhar, na postura, no tom de voz, nos gestos, na capacidade de ler as emoções do outro… Atitudes que parecem pequenas, quase “invisíveis”, mas que fazem toda a diferença para que a criança se sinta acolhida e consiga, também, acolher o outro. É esse tipo de sucesso — o de se relacionar, pertencer e cultivar laços — que, segundo o psicólogo, constrói filhos socialmente saudáveis.
Nowicki passou mais de 40 anos estudando por que algumas crianças encontram tanta dificuldade para se conectar com os outros, muitas vezes, sem nenhuma causa aparente. A conclusão? As que se saem melhor socialmente são as que dominam as sutilezas da comunicação. E para aprender tudo isso não existe fórmula mágica. É preciso viver. Viver o convívio, as trocas, os olhares, os toques, as pequenas frustrações. É no dia a dia, interagindo de verdade, que a criança afina tais habilidades — testando, errando, acertando, sentindo. Em seu livro Como criar filhos socialmente saudáveis (Editora BestSeller), recém-lançado no Brasil, o psicólogo compara a comunicação da criança a uma orquestra.
Para explicar melhor, pense em um grupo que toca vários instrumentos ao mesmo tempo — o olhar, o sorriso, o tom de voz, os gestos e a postura. Todos esses “instrumentos” precisam estar em harmonia para a mensagem ser clara e a criança se sentir conectada com quem está perto. Se algum deles sai do compasso, por exemplo, um olhar distante enquanto ela fala, ou um tom de voz que não combina com a situação — a mensagem fica confusa, o que pode deixar o pequeno inseguro e até dificultar suas amizades.
Como toda orquestra, para funcionar é preciso ensaio. E o que aconteceu nos últimos anos foi justamente o contrário: as oportunidades para isso ficaram cada vez mais raras. A pandemia e as telas afastaram os pequenos do convívio, das rodas de conversa, das brincadeiras no pátio. De repente, tudo o que era vivido de forma espontânea, tête-à-tête, passou a acontecer atrás de máscaras ou de aparelhos eletrônicos. Quando as escolas reabriram e o mundo lá fora voltou a girar, muitas crianças simplesmente não sabiam mais como retomar aquele ritmo social. Se sentiram como músicos tentando tocar juntos, mas sem nunca terem ensaiado.
Nem toda banda toca no mesmo ritmo
Existem regras de comunicação que não precisam ser ditas para serem entendidas. São quase como combinados sociais silenciosos. Você sabe que não deve chegar muito perto de um desconhecido quando vai conversar, que não é legal falar com alguém olhando para o celular, ou que interromper no meio de uma fala pode ser grosseiro. Ninguém ensinou isso com cartilha na mão: você aprendeu aos poucos, lendo expressões, gestos, tons de voz, percebendo o que funciona e o que não funciona.
Isso acontece não só com a gente, mas com outras espécies na natureza. Pense num animal doméstico: se olhar para ele de forma agressiva ou fizer um movimento brusco, ele vai fugir. “Isso faz parte de interpretar sinais do ambiente. É uma função cerebral entender o que está acontecendo ao redor. É assim também com crianças: desde muito cedo, elas vão aprendendo que expressões fechadas ou sorrisos têm significados diferentes, que um tom de voz suave significa outra coisa”, diz o neurologista pediátrico Júlio Koneski, membro do Departamento Científico de Transtornos do Neurodesenvolvimento da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNI).
Por mais que a capacidade de perceber e emitir sinais não verbais seja natural e até instintiva em alguma medida, o jeito de colocar isso em prática varia de pessoa para pessoa. Até porque não é um tipo de conhecimento padronizado e ensinado na escola, como acontece com a linguagem verbal. “Há um senso comum mínimo do que precisamos saber para sermos lidos socialmente, mas cada cultura e cada família traz códigos próprios. Você pode ter dez filhos, mas cada um vai construir um sistema de comunicação diferente”, diz a psicóloga Giana Frizzo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Intervenção em Famílias com Bebês e Crianças (Nufabe).
Vale lembrar, ainda, que fatores como gênero, temperamento e até neurodiversidade influenciam esse processo. Não dá para exigir que uma criança tímida tenha a mesma desenvoltura que uma extrovertida, ou que uma típica se comunique da mesma forma que uma com TEA. Porém, mesmo que façam isso de maneiras e em tempos diferentes, o mais importante é que cada uma encontre o próprio caminho para se expressar, se conectar e se sentir parte do grupo — dentro das suas possibilidades.
Esse cuidado em respeitar o tempo e as particularidades é uma preocupação da influenciadora Bia Ben com o pequeno Benjamim, que ilustram nossa capa deste mês. “Ben é muito inteligente, mas muito tímido. Os primeiros contatos são mais devagar, e respeito o tempo dele. Cada pessoa tem sua forma de lidar com primeiras vezes. Ele é só uma criança — tenho empatia por entender que o mundo é novo para ele. Respeitá-lo como pessoa é a melhor saída. Assim ele se sente seguro, não pressionado”, diz.
Quando a música desafina Se até nós, adultos, às vezes nos atrapalhamos ao interpretar sinais não verbais, imagine as crianças, que ainda estão aprendendo essa linguagem tão sutil. Uma pesquisa publicada no Journal of Nonverbal Behaviour mostrou o quanto elas são influenciáveis por gestos e expressões — mesmo sem perceber. No estudo, 108 crianças de seis a 13 anos assistiram a um vídeo e, em seguida, responderam a perguntas feitas pelos pesquisadores. Só que havia um detalhe: enquanto faziam as perguntas, os adultos usavam gestos enganosos — como apontar para uma alternativa errada, por exemplo. O resultado? Quase todas mudaram suas respostas ou inventaram informações que nem estavam no vídeo, apenas porque foram influenciadas pela linguagem corporal do entrevistador.
Essa confusão mostra o quanto a comunicação não verbal pode ser poderosa e, ao mesmo tempo, traiçoeira, quando ainda não está bem compreendida. No dia a dia, algo parecido pode acontecer quando o pequeno interpreta um olhar sério como rejeição ou não percebe que seu tom de voz está afastando os colegas. Ele sente que algo deu errado, mas nem sempre entende exatamente o quê — e isso pode gerar insegurança, frustração e até isolamento. “A comunicação envolve funções executivas complexas, que o cérebro só termina de desenvolver depois dos 25 anos. Por isso, a criança não vai ter habilidades de se comunicar como um adulto”, explica a psicóloga e neurocientista Mayra Gaiato, fundadora do Instituto Singular.
É claro que podemos (e devemos) apoiar as crianças no aprendizado da comunicação não verbal, incentivando a observar o outro. Mas isso não precisa ser motivo de alarde. Ter dificuldade nesse caminho faz parte do processo: errar, não entender de primeira, se confundir. Isso não significa, necessariamente, que exista um transtorno — ou que algo grave esteja acontecendo.
De todas as crianças que apresentam dificuldades significativas com a linguagem não verbal, eu diria que 80% é porque não aprenderam, mas são perfeitamente capazes. Acredito que algumas, inclusive, são diagnosticadas com TDAH, autismo ou depressão simplesmente porque estão com dificuldades nessa linguagem e, se pudessem aprender, os sintomas talvez desaparecessem”, diz Nowicki. Por isso, antes de pensar em rótulos ou diagnósticos, observe com calma, dê espaço para a criança amadurecer e ofereça um ambiente seguro e acolhedor, no qual ela possa praticar essas habilidades sem medo.
Pequenas atitudes ajudam bastante: se o seu filho tem dificuldade com gestos ou expressões, atividades como teatro, dança ou yoga são boas aliadas para ele se conhecer melhor, ganhar consciência corporal e se expressar. Se, mesmo assim, os desafios persistirem e começarem a prejudicar o dia a dia, aí, sim, pode ser hora de buscar uma avaliação profissional.
Afinando os instrumentos
Enquanto adultos, costumamos prestar muita atenção em como a criança fala, se ela pronuncia as palavras e monta frases corretamente, se conjuga os verbos da forma adequada… Mas nem sempre prestamos atenção se está conseguindo se comunicar bem de outras formas, além das palavras: com o olhar, o gesto, a expressão do rosto, o tom de voz, o jeito de se aproximar ou se afastar. “Parece que as crianças só vão se comunicar a partir do momento que falarem, mas, na verdade, se estivermos conectados com elas, vamos perceber que se comunicam com os olhinhos desde o dia em que nascem. Vão expressar pelo corpo todo, não só na fala. E isso é muito desafiador e assustador para os pais”, diz Giana Frizzo, da UFRGS.
Essa conexão, que vai muito além do verbal, é justamente o que a fisioterapeuta Fernanda Sobral, mãe do Marcelo, de 11 anos, aprendeu na prática. Marcelo é autista e tem apraxia da fala, uma condição que dificulta os movimentos para formar as palavras corretamente. Foi só perto dos sete anos, quando recebeu o diagnóstico e começou o tratamento com a fonoaudióloga, que passou a verbalizar mais do que meia dúzia de palavras. “Antes disso, só de observar o olhar, os gestos, eu sabia o que ele desejava, até as reclamações. Sempre foi desafiador, porque tive que aprender a ler esses sinais mais sutis. Mas entendi que o amor e a presença eram o caminho. Eu estava sempre colada nele, para poder escutar a voz do meu filho”, lembra.
A presença e esse olhar atento de Fernanda é exatamente o que indicam os especialistas, tanto para crianças neurotípicas quanto neurodivergentes. É fundamental estar perto e disponível para ensinar. Se a comunicação não verbal funciona como uma orquestra, os adultos seriam os maestros, que ajudam a criança a encontrar o ritmo e a afinar a sintonia com o outro. “Marcelinho compreende tudo, quer falar e interagir. Mas entendi que, às vezes, preciso mostrar para ele como fazer. Sempre que dá, convido os colegas da escola para irem passear, levo no cinema… É mostrar mesmo como fazer esse vínculo. Sinto que é engrandecedor não só para o meu filho, mas para as outras crianças também”, comenta.
E o trabalho tem de começar dentro de casa mesmo. É ali que o seu filho constrói as bases para depois se conectar em outros ambientes, como a escola. “A escola é justamente o espaço onde muita coisa que foi aprendida de maneira informal na família é apenas ajustada, refinada, desenvolvida”, explica Nowicki. O especialista reforça, ainda, que pais e educadores devem, juntos, assumir uma postura mais formal em relação a isso. “É preciso estar atento, avaliar as habilidades não verbais e, se necessário, ensinar de forma direta”.
A pausa também é parte da música
Como em qualquer processo de aprendizado, as crianças, claro, vão cometer erros enquanto desenvolvem suas habilidades sociais. Vão se aproximar na hora errada, falar alto demais, invadir o espaço do outro sem perceber. É normal e precisamos deixar que isso aconteça, até certo ponto — mesmo que você queira corrigir. Porém, quando o assunto é relação, as pausas também contam. Elas deixam espaço para a criança respirar, processar, amadurecer.
“Antes de repreender um comportamento que nos parece inadequado, vale primeiro narrar e descrever o que aconteceu. Isso acolhe a criança, faz com que ela se sinta vista e, só depois disso, podemos ajudá-la a encontrar outras formas de agir”, orienta a neurocientista Mayra Gaiato. E aqui não é uma questão de proteção, e sim de empatia. A criança que ainda não domina a linguagem não verbal já vive uma frustração constante. Ela tenta se conectar com os outros, mas, sem perceber, acaba cometendo erros o tempo todo. E pior: ela sente que algo está dando errado, mas nem sempre entende o porquê.
Quando você comete um erro na linguagem verbal, por exemplo, usa o tempo verbal errado, um plural no lugar de singular ou uma gíria inadequada — as pessoas costumam fazer uma avaliação intelectual de você. Mas quando você quebra uma regra da linguagem não verbal, o impacto geralmente é emocional. E quase sempre negativo”, explica o psicólogo Stephen Nowicki.
Depois de décadas estudando crianças com dificuldades sociais, Nowicki acredita que finalmente descobriu qual é a chave para criar filhos socialmente saudáveis. Se tivesse de aconselhar os pais, diria: “ensine seu filho a sorrir. Faça com que ele esteja consciente dos sorrisos, do próprio sorriso e dos sorrisos das outras pessoas. Esse é o melhor indicador de conexão entre as pessoas. O melhor indicativo de sucesso social ainda é o sorriso”. E ensinar seu filho a sorrir é estar presente. É trocar afeto com o olhar, permitir errar, tentar de novo. E, acima de tudo, mostrar que, mesmo nas pausas, a música continua.
Sintonia fora do compasso
Alguns comportamentos servem como alerta e podem merecer uma avaliação profissional:
🔹 Dificuldade para entender ou responder às emoções dos outros
🔹 Evitar interações ou invadir o espaço pessoal sem percebe
🔹 Pouco contato visual ou desvio constante do olhar
🔹 Falar muito alto, baixo ou com tom inadequado
🔹 Frustração fácil em situações sociais simples
🔹 Isolamento frequente em ambientes com outras crianças
Nove dicas para ajudar seu filho a praticar comunicação não verbal
Primeira infância (zero a cinco anos)
🔹 Imitar gestos e expressões faciais
🔹 Brincadeiras com músicas e movimentos (bater palmas, acenar)
🔹 Jogos de faz de conta com bonecos e personagens
Segunda infância (seis a nove anos)
🔹 Atividades de mímica e improvisação
🔹 Conversas sobre sentimentos e situações do dia a dia
🔹 Observar e comentar expressões e sorrisos das pessoas
Terceira infância (10 a 12 anos)
🔹 Debates sobre como os outros podem se sentir em diferentes situações
🔹 Incentivar o convite para colegas e o fortalecimento de vínculos
🔹 Assistir a filmes e analisar a linguagem corporal dos personagens.
Fonte: Crescer