Os últimos anos, a morte e o destino do corpo de Leonardo da Vinci

Um dos maiores mestres artistas que o mundo já viu, Leonardo da Vinci viveu e morreu como uma lenda e um talento inquestionável
Por Éric Moreira
Ao longo da história da arte, poucos nomes se consagraram tanto quanto o de Leonardo da Vinci. Praticamente uma lenda que realmente existiu, o gênio renascentista nasceu no dia 15 de abril de 1452 em Anchiano, na Itália, e embora tenha se consagrado principalmente como artista, foi um verdadeiro polímata — um mestre em várias áreas, sendo cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico.
Entre suas obras mais famosas, estão ‘A Última Ceia’, ‘Salvator Mundi’, ‘A Virgem e o Menino’, mas certamente a que mais se destaca é a ‘Mona Lisa’. Mas essa vida marcada por grandes feitos artísticos, além da relação próxima a várias figuras importantes da época, terminou relativamente cedo: Leonardo da Vinci faleceu no dia 2 de maio de 1519, aos 67 anos, no Castelo de Clos Lucé, em Amboise, França, onde viveu seus últimos anos.
Leonardo da Vinci passou quase toda sua vida no norte da Itália, principalmente entre as cidades de Florença — conhecida como o “berço do Renascimento” — e Milão, e depois três anos em Roma. Para alguns, pode surpreender que, mesmo bem estabelecido e bastante reconhecido, ele tenha deixado a Itália para viver seus últimos anos na França; mas, na verdade, isso não foi algo tão grandioso para o artista.
Isso porque, conforme repercute o Nico Franz, Leonardo chegou a viver cerca de 25 anos no Ducado de Milão. E como essa região já era próxima à França, e havia diversos contatos diplomáticos por lá, da Vinci tinha contato não só com a corte milanesa, como também com a francesa há muito tempo — e também contava com muitos admiradores por lá.
Entre esses admiradores, estavam nomes bastante conhecidos. Entre eles: Ana da Bretanha, rainha da França após se casar com o rei Luís XII, outro admirador; e também Francisco I, o rei francês que levou da Vinci para seu reino. Francisco I se tornou rei em janeiro de 1515, com 20 anos, quando Leonardo tinha como patrono o italiano Giuliano di Lorenzo de’ Medici (irmão do Papa Leão X). No entanto, após a morte de Giuliano, em março de 1516, Francisco — que já até conhecia Leonardo pessoalmente — convidou o artista para viver na corte real francesa em Amboise, junto de seus alunos Francesco Melzi e Salai.
Vale mencionar que Francisco I foi um dos chamados “Reis do Loire”, que não viviam em Paris. Isso se deve ao fato de, durante a Guerra dos Cem Anos entre a França e a Inglaterra, a capital francesa ter sido ocupada por forças inglesas; o que levou os reis franceses a retirarem-se para o Vale do Loire, no oeste da França, onde organizaram sua resistência, sendo o Castelo de Amboise uma das residências preferidas dos reis. Paris só voltou a ser a residência real em 1528, já após a morte de Leonardo, ainda durante o reinado de Francisco I.
Segundo o leonardodavinci.net, da Vinci aceitou a oferta — recebendo o título de “Primeiro Pintor, Engenheiro e Arquiteto do Rei” — e deixou a corte papal em Roma, atravessou os Alpes, levando consigo não apenas seus aprendizes, mas até algumas de suas obras mais famosas, como a ‘Mona Lisa’, ‘A Virgem e o Menino com Santa Ana’ e ‘São João Batista’, rumo à corte real em Amboise.
Apesar de Leonardo ser altamente respeitado na corte francesa, lá ele passou a receber um salário anual de 1000 ducados, que era apenas metade do que recebia do Duque de Milão. Embora isso pareça um desrespeito à sua memória, havia justificativa. Isso porque o mais alto funcionário do rei, na época, também recebia 1000 ducados. E sendo estrangeiro e pintor — logo, segundo o entendimento da época, apenas um artesão — caso ele recebesse um salário superior, certamente haveria alguns distúrbios na corte.
Mas como compensação, Francisco I concedeu a Leonardo um privilégio adicional, em sua ida para a França: o castelo vizinho de Cloux. Hoje conhecido como castelo de Le Clos Lucé, ele está a apenas 500 metros do Castelo de Amboise — e uma curiosidade interessante é que eles estão até mesmo conectados por um túnel, que o rei francês teria usado para visitas a Leonardo em conversas privadas.

Nos seus três últimos anos de vida, Leonardo ainda trabalhou incessantemente, com a alma inquieta de artista que tinha. Ele passava seu tempo principalmente desenhando, ensinando e se aprofundando em seus estudos científicos e suas próprias pinturas, além de trabalhar em vários projetos para o rei, como planejamento urbano, arquitetura e projeto de canais.
De maneira geral, não se sabe em muitos detalhes como foram os últimos três anos de Leonardo da Vinci na França. O que alguns registros históricos indicam é que, naquela época, sua saúde já estava consideravelmente frágil, e ele sofria até mesmo com paralisia, devido a uma série de derrames. Porém, isso é questionado por alguns, tendo em vista as várias atividades que ele realizou no período.
Em geral, as especulações sobre doenças de Leonardo se baseiam em duas fontes históricas; ambas com poucas informações, e sujeitas a interpretações variadas. Uma delas é uma carta escrita pelo próprio artista em 1515, para seu então patrono Giuliano di Lorenzo de’ Medici, e outra é o relato de viagem de Antonio de Beatis, considerada a última fonte que relatou sobre Leonardo ainda vivo.
Na carta, cujo rascunho foi encontrado nos cadernos de Leonardo, o artista mencionou o período em que o patrono sofria de um surto de tuberculose. Leonardo começa a carta escrevendo: “quanto à tão esperada restauração de sua saúde, ilustre senhor, regozijei-me tanto que minha doença quase me deixou”. Porém, da Vinci não menciona mais sua “doença” em qualquer outro momento da carta. Em vez disso, ele reclama sobre um artesão preguiçoso que havia lhe causado alguns problemas, e várias outras questões menores, de forma que entender que ele sofria com uma doença pode ser apenas um erro de interpretação, e não uma evidência de uma doença grave, de fato.
Já o relatório de viagem de Antonio de Beatis chama mais atenção. Ele foi secretário do Cardeal Luigi d’Aragona, de Nápoles, e foi enviado em uma viagem diplomática de grande escala pela Europa Ocidental entre 1517 e 1518; nesse período, precisava manter um diário de viagem. Quando visitou Francisco I, em 10 de outubro de 1517, no Castelo de Amboise, o cardeal também aproveitou para visitar Leonardo no Castelo de Clos Lucé. E Antonio de Beatis descreveu um “Leonardo da Vinci idoso” — nessa época, ele tinha 65 anos — e observa: “infelizmente, não se pode mais esperar nada do mestre, pois seu lado direito está paralisado”.
Sendo estas as únicas informações sobre a saúde de da Vinci nestes últimos anos, frequentemente se sugere que o artista sofreu um ou mais derrames, devido à paralisia parcial descrita por Beatis. No entanto, muitos ignoram que Leonardo era canhoto, e usava predominantemente o braço esquerdo, o que poderia ter dado a desconhecidos a impressão de que ele estava com o lado direito paralisado.
Vale mencionar também que, após 1517, Leonardo ainda fazia anotações em seu caderno, com registros datados até de 1518. E essas anotações ainda incluíam desenhos altamente detalhados, o que pode contradizer as teorias de que ele estava incapacitado. Até mesmo o comentário de que Leonardo da Vinci era um homem idoso, de Beatis, pode ser questionado, visto que há registros de que o artista ainda viajava ativamente pelo Vale do Loire para planejar ou supervisionar atividades de construção até meados de 1518. Para a época, as distâncias entre os castelos de Amboise, Chambord, Blois e Romorantin, nos quais Leonardo trabalhou, eram significativas, demandando de um a dois dias de viagem de carruagem — o que teria sido uma dificuldade considerável para uma pessoa idosa, ainda mais se estivesse parcialmente paralisada.
Testamento
Parecendo pressentir que o fim estava próximo, Leonardo da Vinci curiosamente redigiu seu testamento apenas uma semana antes de sua morte, no dia 23 de abril de 1519. Na ocasião, o tabelião Boreau foi ao Castelo de Clos Lucé, o recinto do artista, para garantir que o documento fosse preparado, sendo este um direito bastante especial que da Vinci teve. Isso porque, segundo as leis da época, como Leonardo não era membro da nobreza, todo o seu patrimônio deveria ser destinado ao rei. Mas, nesse caso, Francisco I lhe concedeu uma permissão especial para fazer um testamento, onde determinaria por si mesmo o destino de seus bens. Lembrando que Leonardo não teve filhos, sobre a herança, um dos alunos de Leonardo, Francesco Melzi (então com 28 anos) foi nomeado como executor do testamento. Ele próprio recebeu do mestre suas notas, livros, ferramentas, roupas, além de salários em atraso e o dinheiro presente no Castelo de Clos Lucé.
Já seu outro aluno, Salai, recebeu metade de uma propriedade perto de Milão; enquanto a outra metade foi para seu servo Vilanis, que também recebeu os direitos de tirar água do canal navegável de São Cristóvão, em Milão — um direito concedido originalmente a Leonardo pelo rei Luís XII — além dos móveis e utensílios de Clos Lucé.
Os irmãos de Leonardo, que viviam em Florença, receberam seus bens do banco florentino (400 ecus de ouro, o que correspondia a cerca de 1,4 kg de ouro); sua criada, Maturina, recebeu roupas finas e dois ducados (o equivalente a cerca de dois a três meses de salário); e, por fim, uma pequena quantia de 70 soldi (aproximadamente o salário médio mensal) foi doada aos pobres da região de Amboise.
Vale acrescentar que é possível que, após a morte de Leonardo, Salai tenha ficado com várias de suas pinturas. Quando Salai faleceu, em 1524 — em uma ocasião descrita em registros da época como “morte violenta” — sua esposa Blanca de Anono e suas irmãs Angelina e Laurentiola disputaram sua propriedade, e uma escritura pública demonstrou que havia, ali, várias pinturas; muitas descritas de maneira bastante parecida a obras de da Vinci que estiveram sempre em sua posse. Mas também é possível que o que Salai detivesse fossem apenas cópias de boa qualidade feitas por alunos de Leonardo (ou pelo próprio Leonardo), enquanto esses originais do artista nunca teriam nem saído da corte francesa.
Mas o testamento também incluiu detalhes sobre como deveria ser sua cerimônia de sepultamento. O que Leonardo desejava era ser enterrado na Igreja de Saint-Florentin, em Amboise; que fossem celebradas três missas solenes e trinta missas silenciosas nas quatro igrejas da residência real em Amboise, antes do enterro; que seu caixão fosse transportado de Clos Lucé para a Igreja de Saint-Florentin pelos capelães da igreja, que o caixão fosse acompanhado por 60 pessoas pobres, que deveriam carregar uma grande vela cada, além de representantes de Saint-Florentin e dignitários das outras três igrejas; e as sessenta velas deveriam ser divididas igualmente entre as quatro igrejas de Amboise.
Morte
A morte de Leonardo ocorreu no dia 2 de maio de 1519 — o que possivelmente não pegou ninguém de surpresa, visto que seu testamento foi feito uma semana antes — com apenas 67 anos. Não há fontes da época que detalhem exatamente as circunstâncias de sua morte, mas a idade indica que pode, sim, ter sido devido a algum problema de saúde; para efeito de comparação, Michelangelo, que era cerca de 20 anos mais novo, viveu até os 88 anos, o que coloca a morte de Leonardo como consideravelmente cedo.
Um relato bastante famoso da morte de da Vinci foi feito pelo pintor e arquiteto florentino Giorgio Vasari, considerado o primeiro historiador da arte. Ele descreve que o artista ficou doente por muitos meses, confessou-se antes de sua morte e, finalmente, pereceu nos braços do rei, “aos 75 anos”. Porém, esse relato é bastante questionado, tendo em vista que a biografia de da Vinci, feita por Vasari, foi escrita 30 anos após a morte — quando Leonardo morreu, Vasari tinha apenas sete anos — e ele é frequentemente associado a relatos imprecisos. Ele errou, inclusive, na idade da morte de da Vinci, escrevendo que ele morreu aos 75 anos, quando na verdade ele tinha 67. De qualquer forma, foi esse relato que inspirou muitos artistas a criarem representações da morte de da Vinci nos braços do rei.

Não foram divulgadas quaisquer fontes históricas sobre o funeral de da Vinci, mas presume-se que, devido a sua importância, tudo ocorreu bem como o artista estipulou em seu testamento. O que se tem certeza é que ele foi sepultado em 1519 na Igreja de Saint-Florentin, tendo em vista o registro do Capítulo Real da Igreja, que diz: “no claustro desta igreja foi sepultado: Mestre Lionard de Vincy, nobre de Milão, primeiro pintor, engenheiro e arquiteto do Rei, Perito Estatal em Mecânica e antigo Diretor de Pintura do Duque de Milão”.
Vale destacar que o fato de Leonardo ser sepultado dentro das muralhas do castelo também é uma grande honra. Isso normalmente era um direito exclusivo de membros da família real ou do alto clero; o que confirma ainda mais a estima especial que o artista desfrutava na corte francesa de Francisco I. Mas o local, apesar de importante, não era intacto. Durante a Revolução Francesa, a Igreja de Saint-Florentin foi profanada, e rapidamente foi abandonada e caiu em ruínas.
Entre 1806 e 1810, um seguidor próximo de Napoleão Bonaparte chamado Roger Ducos, ex-cônsul que recebeu o castelo do líder francês para seu uso, mandou demolir completamente o que ainda restava da igreja, o que levou à perda completa do túmulo de Leonardo e de seus restos mortais.
Foi só mais posteriormente, em 1863, que escavações realizadas no terreno da antiga igreja revelaram uma cripta funerária com restos humanos. Lá, foi encontrado um esqueleto quase completo, e fragmentos de uma laje de sepultura com as sequências de letras “…EO…AR…DUS…VINC…”, que puderam ser interpretadas como, originalmente, “LEONARDUS VINCI”.
Além disso, também foram encontradas moedas francesas e italianas da época de Francisco I, e o esqueleto tinha uma altura corporal de cerca de 1,76 metro, excepcionalmente alto para a época, o que também coincidia com relatos que descreviam o artista como um homem alto. Por isso, restaram poucas dúvidas de que aqueles restos mortais eram, de fato, os tão procurados restos de Leonardo da Vinci.
Posteriormente, em 1874, os ossos de da Vinci foram transferidos para a Capela de Saint-Hubert, no Castelo de Amboise, onde acredita-se que está o túmulo de Leonardo até hoje. A capela é aberta ao público e pode ser visitada; enquanto no local da antiga Igreja de Saint-Florentin, há um busto de Leonardo que homenageia o ponto como seu local de sepultamento original.

Fonte: Aventuras na História




















