Comportamento & Equilíbrio

O vício em celular: um sintoma da era do vazio e seu impacto na sociedade

Por Núbia Arruda

Vivemos um tempo em que a presença física já não garante a presença real. É comum ver famílias reunidas à mesa, mas cada um com os olhos fixos em uma tela. O celular, que nasceu como instrumento de comunicação, tornou‐se o principal meio de desconexão com o outro e, principalmente, consigo mesmo. A psicanálise compreende esse fenômeno como algo que vai muito além de um hábito: trata‐se de um sintoma da era do vazio, onde o sujeito busca incessantemente preencher um espaço interno que não cessa de doer.
O vício em celular é uma forma moderna de lidar com o mal‐estar que acompanha a existência humana. Freud, em ‘O mal‐estar na civilização’, já apontava que o homem, ao tentar controlar o sofrimento, cria novas formas de fuga e prazer. O celular, nesse contexto, é o refúgio contemporâneo. Ele oferece distração, conforto e uma sensação ilusória de controle. Com um toque, acessamos mundos, vozes, imagens e identidades — tudo o que possa afastar o desconforto da solidão e do silêncio.

Mas o que a psicanálise revela é que por trás dessa busca constante por conexão, existe uma profunda dificuldade em estar só. O sujeito moderno teme o vazio. Não suporta o tempo da espera, o silêncio entre as palavras, a ausência de estímulo. Assim, o celular passa a ser usado como um anestésico psíquico: toda vez que algo angustia — uma pausa, uma emoção, um pensamento incômodo —, ele é acionado para preencher o espaço.

Esse comportamento compulsivo é uma tentativa inconsciente de tamponar o vazio existencial. Lacan dizia que o ser humano é marcado pela falta, e é justamente essa falta que o impulsiona ao desejo, à criação e à vida. No entanto, quando o sujeito tenta eliminar o vazio em vez de escutá‐lo, ele se aprisiona no gozo repetitivo. O gesto de desbloquear a tela e rolar o feed torna‐se uma repetição quase automática, um modo de gozar sem realmente desejar.

O impacto desse vício na sociedade é visível e alarmante. Relações humanas estão se tornando superficiais, mediadas por curtidas e reações. A linguagem se empobrece, o diálogo se fragmenta e o olhar perde sua profundidade. A cultura da imagem substitui a experiência da presença, e o “ser” dá lugar ao “parecer”. As redes sociais funcionam como vitrines de um “eu ideal” — belo, feliz e produtivo — que aprisiona o sujeito em uma constante comparação com o outro.

Esse cenário produz sofrimento psíquico em larga escala. A ansiedade cresce, o sono é comprometido, e os níveis de solidão aumentam mesmo entre aqueles que “vivem conectados”. Muitos jovens desenvolvem crises de identidade e depressão associadas à necessidade de validação virtual. A sociedade, ao mesmo tempo que celebra a tecnologia, vive um processo silencioso de adoecimento emocional.

(Foto: iStock)

A psicanálise entende que o vício não é sobre o objeto — seja o celular, a comida ou a droga — , mas sobre a função que esse objeto ocupa no inconsciente do sujeito. Ele serve como uma tentativa de lidar com a falta, de fugir do real e de evitar o confronto com o próprio desejo. O celular, portanto, não é o problema em si, mas o espelho de um mal‐estar mais profundo: o vazio existencial da contemporaneidade.

Donald Winnicott, psicanalista inglês, falava do “objeto transicional” — aquele que o bebê usa para suportar a ausência da mãe. O adulto moderno parece ter transformado o celular em seu novo objeto transicional: ele o segura, acaricia, leva consigo para todos os lugares. É como se o aparelho garantisse a presença simbólica de algo que o sujeito teme perder — o vínculo, a segurança, o pertencimento.

Mas essa relação simbiótica tem um preço. O excesso de estímulo digital reduz a capacidade de concentração, fragiliza a memória e interfere na criatividade. Crianças e adolescentes, expostos desde cedo às telas, mostram sinais de impaciência, irritabilidade e dificuldade de lidar com o tédio — um elemento essencial para o desenvolvimento psíquico saudável. O tédio, quando vivido, é o espaço onde o pensamento nasce; quando evitado, é substituído por um fluxo incessante de conteúdos que impedem a reflexão.

A sociedade, movida pela lógica da rapidez, produz sujeitos fragmentados e exaustos. Tudo precisa ser imediato: a resposta, o prazer, a notícia. E nessa pressa, o ser humano se perde de si mesmo. A ausência de pausa impede o encontro com o próprio inconsciente, e o sujeito passa a viver em um ruído constante — incapaz de ouvir o que sente, pensa ou deseja.

O papel da psicanálise é justamente o de resgatar o valor do silêncio e da escuta. No espaço analítico, o sujeito é convidado a falar, a se escutar e a sustentar o vazio sem preenchê‐lo. É nesse intervalo, nesse tempo suspenso, que algo novo pode surgir: o reconhecimento da própria falta como motor de vida, e não como algo a ser negado.

Repensar nossa relação com o celular é também repensar nossa relação com o desejo, com o tempo e com o outro. Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de reconhecer o limite entre o uso e o abuso, entre a presença e a fuga. O desafio contemporâneo é resgatar a capacidade de estar inteiro — de olhar nos olhos, de conversar sem distração, de sentir o agora sem precisar registrá‐lo.
Desligar o celular, ainda que por alguns minutos, pode ser um gesto simbólico de reconexão com o que realmente importa: o contato humano, a introspecção, a escuta e o sentido. Porque, no fim, o verdadeiro vazio não está na ausência de notificações, mas na ausência de si mesmo.

Núbia Arruda
Formada em Administração
Psicanalista Clínica

Luzimara Fernandes

Luzimara Fernandes

Jornalista MTB 2358-ES

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