Comportamento & Equilíbrio

As aparências enganam. Outro serial estuprador — Parte V

Quando vamos nos humanizar? Quando vamos deixar de gozar com a morte psicológica ou física de crianças e mulheres, acobertando predadores cruéis?

Outro Professor. Outra aparência ilibada. Outro que usava da prerrogativa de ser Representante. Neste caso, não de uma classe profissional como o do Instituto Nacional que “defende” Direito de Família, mas como Representante do Povo, Vereador há mais de 20 anos. Outro Estuprador em Série. Pelo menos 12 crianças vinham sendo estupradas por ele, que se entregou à polícia e foi preso. Não sabemos por quanto tempo, porque há um entendimento jurídico corrente que se o criminoso tem uma ficha limpa, tem endereço fixo, não oferece perigo. Não oferece perigo para quem?

(Foto: Pixabay)

Urge pensar que parecer uma pessoa acima de qualquer suspeita não é suficiente para inverter as posições de vítima e algoz, principalmente quando se trata de uma relação assimétrica onde a autoridade e o afeto fazem parte da dupla em questão, e recaem sobre o adulto. Ser professor, ser médico, ser advogado, ser empresário, ser famoso, não garante ser correto. Aqueles que têm defeito de caráter, ou não têm caráter, também se tornam professores, médicos, parlamentares, etc. E, posso dizer, com facilidade porque não sofrem emocionalmente, não têm conflitos éticos ou morais, o que desobstrui bastante os caminhos. E por isso — por essa facilidade sedutora e manipuladora, inescrupulosa — galgam postos superiores para obter a confiança dos adultos do entorno dos vulneráveis. Essa subida está intrínseca ao exercício do Poder, seu único objetivo. Até chegar ao seu Olimpo, o Prazer do Poder Absoluto contra um frágil, escravizando-o.

(Foto: Pixabay)

Intrigante é verificar a quantidade de mulheres que se alinham aos predadores, inocentando-os. São advogadas, promotoras de justiça, juízas, psicólogas, assistentes sociais e, várias vezes, também, mulheres da família da criança estuprada. Mães que não acreditam no pedido desesperado de ajuda que o filho ou filha lhe faz. Essa situação de negação da ocorrência do abuso sexual pela mãe da criança, que relata com pormenores, tem diminuído em relação ao tempo em que quase nenhuma dava crédito à Voz que pedia socorro. Muitas vezes, decorrente de dependência financeira ou emocional da mãe em relação ao genitor. Com a profissionalização da mulher, aquela frase que cheguei a ouvir há algumas décadas, “não posso doutora, vou proteger um e deixar quatro com fome?”, está mais rara.

De tentativa em tentativa temos conquistado uma boa legislação. O ECA e a Lei Maria da Penha incomodam e vivem sob ataques permanentes porque desenharam um contorno de Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Mulheres. Mas o contorno não foi suficiente. Haja vista a ausência de implementação de uma Cultura de Respeito a Direitos de Vulneráveis.

A Misoginia contamina um grande número de homens e, relativamente, um enorme número de mulheres. Talvez pudéssemos buscar uma compreensão na Tese da Espiral de Silêncio, proposta por Elisabeth Noelle-Neumann, que acomete as pessoas em situação de minoria, quando a ameaça da crítica e do isolamento faz calar. As desculpas são, frequentemente, assentadas no escapismo, numa espécie de economia para não se aborrecer, tornando a não verbalização de seu pensamento ou opinião omisso, dando um aval para a maioria.

(Foto: Reprodução)

Talvez possamos pensar que essas mulheres que circundam e as mulheres que decidem as vidas das minorias fragilizadas sejam contaminadas pelo Poder da voz e da postura testosterona que impera. Também nesse caldeirão da Misoginia podemos pensar que a Identificação com o Agressor, Mecanismo de Defesa do Ego, é também uma via de escape para se aliar ao Poderoso e não sentir, por identificação também, o medo e a impotência da mãe e da criança em situação de violência.

Muitas vezes me pego de queixo caído diante de decisões que parecem sair da boca de um predador cruel, e são decisões construídas por várias mulheres na escala de uma vara de família, e que vão constituir uma sentença judicial.
Confesso que sei que de quase nada adiantam esses artigos aqui escritos e publicados. Mas vou continuar escrevendo a obviedade da crueldade que vem sendo cometida por uns autores, que contam com a complacência social, e pelos outros que fazer questão de distorcer teorias e montar um mosaico com fragmentos manipulados para justificar o injustificável. Parece que tudo em nome de uma ilusão de Poder testicular.

Quando vamos nos humanizar? Quando vamos deixar de gozar com a morte psicológica ou física de crianças e mulheres, acobertando predadores cruéis?

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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