Comportamento & Equilíbrio

A mulher no olho do conflito

Por Núbia Arruda

Na manhã de 28 de outubro de 2025, durante a ação da Operação Contenção — mobilização que envolveu milhares de agentes no Complexo do Alemão e na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio de Janeiro — uma mulher foi capturada por 26 criminosos e levada refém. Em determinado momento, os sequestradores filmaram a rendição ao armar a mulher como cinegrafista forçada, para que os policiais vissem que estavam “sem camisa e desarmados” e não os matassem.
Essa situação atinge camadas profundas na vida da vítima — e suas implicações emocionais, sociais e psicológicas merecem cuidadosa reflexão.

Impacto imediato — medo e vulnerabilidade extrema
A mulher foi mantida refém em um ambiente fortemente armado, com armas de grosso calibre (foi encontrada uma casa usada como esconderijo com 19 fuzis) enquanto o confronto acontecia. Isso já por si gera um nível de vulnerabilidade superior: vivenciar proximidade com o perigo da morte, da violência, da arma, do confronto.

Sentimento de impotência e humilhação
Ser obrigada a filmar a rendição, ou seja, ser usada como instrumento de propaganda ou chantagem coloca a pessoa em situação de submissão, humilhação, e perda de agência. A refém não escolheu estar ali, não escolheu filmar; teve de obedecer para sobreviver.

Choque e possível trauma
Ver sangue nas paredes do local, ouvir sobre “um amigo morto” no chão, perceber que se está dentro de um esconderijo de criminosos enquanto a polícia investiga, tudo isso são elementos que podem configurar eventos traumáticos de alta gravidade. A resposta corporal (hipervigilância, medo, tremores, taquicardia) e emocional (sentimento de culpa, de estar “viva por milagre”, de vergonha, etc.) podem surgir imediatamente.

Impacto médio e prolongado — transtorno de estresse pós‐traumático (TEPT)
Quem vive uma situação de refém ou de contato direto com violência extrema tem risco aumentado de desenvolver TEPT: lembranças intrusivas, flashbacks, pesadelos, evitamento de lugares ou objetos que lembram o evento (por exemplo, evitar sair de casa, ver a janela para as comunidades, ouvir tiros, ver policiais ou viaturas), irritabilidade ou explosões emocionais, hipervigilância constante.

Alteração da percepção de segurança e pertencimento
Morar numa comunidade onde operam facções ou tráfico armado, e ser vítima de uma ação tão agressiva, pode corroer o sentimento de que o lar é seguro. A casa, o bairro, a vizinhança deixam de ser “refúgio” e passam a simbolizar risco. Isso altera profundamente a confiança social, no outro, no estado, no coletivo. A sensação de “não ter mais controle” ou de “estar sempre em perigo” pode se instalar.

Culpa da sobrevivente e autojulgamento
Embora vítima — e não culpada — essa mulher pode desenvolver o que se chama “culpa do sobrevivente”: “por que eu sobrevivi?”, “e se eu tivesse reagido de outro jeito?”, “o que meus amigos/familiares vão pensar de mim?”. Esses pensamentos podem gerar retraimento, depressão, sentimento de sabor amargo na vida cotidiana.

Desconfiança e isolamento
Ela pode passar a se isolar, para fugir de lembrar ou reviver aquela dor. Pode recusar convites, abandonar atividades que antes fazia com prazer. O medo de agressão ou de reviver a cena pode levar a evitar sair, a passar a noite sem dormir direito, ou a restringir o círculo social.

(Foto: Gerada por IA)

Impactos físicos e psicossomáticos
A carga emocional também se manifesta no corpo: taquicardia, suores noturnos, dores musculares, insônia ou hipersonia, digestão alterada, alterações de apetite. A mente que vive em alerta gera desgaste físico.

Implicações sociais e comunitárias — estigmatização silêncio
Em comunidades em conflito, muitas vítimas preferem não falar, por medo de repercussão, de represália ou por vergonha. O silêncio impede o acolhimento e o suporte necessário, reforçando o isolamento.

Desconfiança das instituições
Se a ação policial é vista como “guerra” dentro do território, e a moradora foi objeto colateral ou instrumento de propaganda dos criminosos, isso pode gerar uma visão ainda mais negativa das forças de segurança, do Estado. Sentimentos de abandono ou de “ninguém me protegeu” podem surgir.

Quebra de laços comunitários
O trauma pessoal pode se refletir no convívio com vizinhos, amigos e família. A mulher pode mudar sua rotina, seu comportamento, o que pode alterar a dinâmica comunitária: menos conversas, menos encontros, menos participação. Isso afeta o tecido social local.

Herança emocional
Se essa mulher é mãe, tia, avó ou figura central em seu núcleo, seu abalo emocional reverbera para outros membros da família: filhos que veem‐na diferente, que sentem medo, ansiedade; vizinhos que descobrem o que ela viveu e ficam com receio; até gerações futuras que podem crescer num ambiente de insegurança prolongada.

Conclusão
O episódio da moradora do Rio de Janeiro que foi obrigada a filmar uma rendição em meio a fuzis e bombas não é apenas mais uma manchete de violência urbana — é um trauma profundo que pode marcar toda a sua existência. O impacto vai além do medo imediato: afeta corpo, mente, espírito, relações, comunidade. Mas também pode se tornar ponto de virada: com acolhimento adequado, escuta sensível, fé e apoio, pode nascer uma caminhada de recuperação, resiliência e florescimento — mesmo em “qualquer estação”.

Núbia Arruda
Formada em Administração
Psicanalista Clínica

Luzimara Fernandes

Luzimara Fernandes

Jornalista MTB 2358-ES

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