Espacialidade e Temporalidade — Parte I
Quando e como adquirimos essas noções de espaço e de tempo? O desenvolvimento de uma criança é uma obra de arte perfeita
“Eu fui no cinema amanhã ver o Rei Leão”. “Fui” e “amanhã” se referindo à mesma experiência de uma criança de quatro anos. Se for perguntada sobre o ambiente físico do cinema, ela fornecerá alguns dados interessantes para a compreensão do processo de aquisição das noções de espaço. Certamente memorizou que a cadeira “fechava” se ela se mexesse de uma certa maneira. Citaria o escuro e o som alto. Esses são dados sensoriais obtidos na experiência do primeiro cinema. Na percepção sensorial memorizada fica a existência concretizada da luz e do som.
Quando e como adquirimos essas noções de espaço e de tempo? O desenvolvimento de uma criança é uma obra de arte perfeita. As comunicações de sistemas, as sinapses neurológicas em profusão e, diria, as outras sinapses, uma espécie de “intersinapse” ou “multissinapse”, que transmitem as comunicações entre vários sistemas dentro do corpo. Trabalho contínuo, e crescente a cada segundo durante a infância. Não conseguiríamos contar quantas sinapses foram necessárias para a elaboração da frase inicial: ‘eu fui no cinema amanhã ver o Rei Leão’. Milhões e milhões. E se pedirmos para a criança repetir em seguida, já teriam entrado na frase mais alguns milhões de sinapses.
Uma criança de três anos já tem um razoável esquema corporal dela mesma. Ela localiza e nomeia as partes do seu corpo, tem uma autopercepção dos acontecimentos sensoriais que ocorrem no seu corpo, e, o mais importante, é a partir desse esquema corporal que ela vai construir sua noção de espacialidade.
O espaço é aferido pelo seu corpo, ele é o parâmetro para dimensionar o espaço em que está inserida e o espaço de sua observação.
Mergulhada na engrenagem do ininterrupto sistema sináptico neurológico, para construir essa noção, ela lança mão do seu acervo de cognição e de linguagem. Mas é, principalmente, pela sua motricidade que ela fará com que os dados sensoriais, suas percepções concretas, se tornem um primeiro conceito de espaço que irá se sofisticando à medida que seu desenvolvimento vai ocorrendo e se tornando cada vez mais complexo. Os gestos corroboram o espaço. E a criança tem, na fase da imitação, a fase do desenvolvimento cognitivo que organiza a partir das identificações aparentes das pessoas que lhe importam.
A noção de espaço, portanto, nasce e vai crescendo a partir do seu corpo, que é o espaço primeiro. Completamente compatível com o seu funcionamento cognitivo, em raciocínio concreto, até os 10-11 anos. O espaço é perceptível, é palpável, é concreto. O “onde” pode não ser pronunciado corretamente numa resposta de uma criança de três anos, mas ela é capaz de descrever com algumas referências que estão na realidade.
Mas o tempo não é tangível concretamente. A noção de tempo não se alimenta do concreto. Onde ela poderia ver o ontem, o hoje, o amanhã? Buscando na linguagem os advérbios, lembrando que ela não sabe o que é um advérbio de tempo, ela, frequentemente, se confunde com o significado dele. “Amanhã eu fui” é a comprovação dessa dificuldade de aquisição pela ausência de concretude, do fator experiencial.
A criança, diante dessa dificuldade, tenta apelar para localizações, em geral, em autorreferência. Quando o corpo dela reaparece em seu discurso: “quando eu era pequena”, “quando eu tinha dois anos”, ou “quando eu estava na escola”, e, assim, consegue minimizar sua deficiência relativa à noção de tempo. Ela será auxiliada pelo raciocínio de seriação. Essa é a época dos álbuns de figurinhas, da aprendizagem da numeração, a experiência cognitiva das sequências. Essa fase, em torno dos seis, sete anos, é essencial para construir a noção de tempo. É o antes e o depois das figurinhas. E essa descoberta transborda e a criança inclui em suas brincadeiras o ordenamento de carrinhos, de lápis, de bichinhos ou bonecas, criando filas que obedecem a um critério de ordem que ela estabelece.
Como um cientista, todas as aquisições no desenvolvimento motor, linguístico, e, principalmente, cognitivo, regadas pelo afetivo, e patrocinada pelas sinapses das transmissões neuronais, a criança cresce repetindo padrões rigorosos para concluir por um novo dado. É um funcionamento científico, onde a observação e a repetição de qualidade, escolhendo uma única variável, vão levá-la à verdade do mundo que a rodeia. Ela é muito séria nessas pesquisas sobre cada mistério ao seu redor, para que forme e ajuste a cada dia sua visão de mundo. Por isso, seu enorme apego à verdade. Não tem filtro social e, muitas vezes, fala o que, socialmente, deveria guardar, colocando os adultos em saia justa. Aprende bem pequena a dizer que “é verdade verdadeira” quando percebe que alguém não está lhe dando crédito.