A Mais Preciosa das Cargas” revela um drama de guerra arrebatador

Animação “A Mais Preciosa Das Cargas” é ambientada durante a Segunda Guerra Mundial
Por Fabio Calsavara
Em sua estreia no universo da animação, o cineasta francês Michel Hazanavicius — conhecido mundialmente por “O Artista”, vencedor de cinco Oscars — entrega uma obra delicada e poderosa com A Mais Preciosa das Cargas. Baseado no conto homônimo de Jean-Claude Grumberg, o filme combina uma estética poética com uma narrativa profundamente humana, ambientada em um dos períodos mais sombrios da história: a Segunda Guerra Mundial.
A história se desenrola em uma remota e gelada floresta da Europa Oriental, lar de um casal de lenhadores que vive à margem da sociedade e da pobreza. A mulher, em particular, marcada pela ausência da maternidade, tem sua rotina ditada pelo som melancólico dos trens que cruzam a mata. Embora jamais sejam explicitamente identificados, esses comboios carregam o silêncio e o peso da tragédia do Holocausto.
O ponto de virada ocorre quando ela encontra uma criança, abandonada em circunstâncias dramáticas, entre os vagões. Esse encontro fortuito transforma drasticamente as vidas do casal e se desdobra em uma saga que testa os limites da compaixão, da coragem e da mera sobrevivência.
Filme lida com a brutalidade da guerra
Hazanavicius faz uma escolha consciente de não mostrar indicadores de violência explícita. Sem soldados nazistas, suásticas ou campos de concentração, são as sugestões visuais empregadas pelo diretor que levam o espectador a formar sua própria versão da brutalidade da guerra. Essa escolha torna a narrativa ainda mais impactante, pois convida à reflexão sem recorrer à violência em si.
Visualmente, A Mais Preciosa das Cargas se estabelece como uma proeza. A animação lembra as ilustrações clássicas de livros infantis, mas com uma paleta de cores e texturas que acentuam o frio, o isolamento e a melancolia da paisagem. O contraste entre a inocência da criança recém-descoberta e o ambiente hostil é o principal fio condutor da história.
A história do filme é apresentada como uma espécie de conto de fadas, com a narração em off do venerável ator francês Jean-Louis Trintignant introduzindo a ambientação rural durante a Segunda Guerra Mundial com a linguagem dos livros infantis, mas a promessa de uma história de temas e horrores muito adultos. Pode parecer um impulso natural ao desenho animado, mas o que não falta no cinema são obras que se aproveitam dessa mistura entre as narrativas mágicas da infância e a concretude do live-action para, justamente, estabelecer o clima de conto de fadas sombrio que querem estabelecer (O Labirinto do Fauno, Desventuras em Série, Edward Mãos de Tesoura, e por aí vai).
A trilha sonora é de Alexandre Desplat, vencedor de dois Oscars (por O Grande Hotel Budapeste e A Forma da Água), o compositor francês regride aqui a orquestrações fáceis e estridentes, que evocam tragédia e elevação sem traço de graciosidade melódica. Não há melancolia ou aspiração aqui — só choque, choque, choque. Daí talvez venha também o design de personagens grosseiros e prosaicos do filme, frequentemente em conflito com a bela evocação dramática dos cenários ricamente desenhados em que eles estão inseridos.

Os “Sem Coração” são pilar moral do filme
Na animação, o marido lenhador se refere à criança como uma “Sem Coração”, a forma encontrada pelo diretor para caracterizar aqueles transportados pelos comboios. Sua atitude reflete o preconceito enraizado, mas ao longo da trama, ele passa por uma transformação emocional que desafia essa visão. Quando o lenhador começa a demonstrar afeto pela criança, seus colegas passam a desconfiar de sua lealdade. A suspeita e o ódio coletivo culminam em violência, revelando como o preconceito pode se tornar uma força destrutiva mesmo entre vizinhos e conhecidos.
A escolha do nome “Sem Coração” carrega uma ironia cruel. Os personagens que usam esse termo acreditam que essas pessoas são desprovidas de sentimentos, humanidade ou valor — quando, na verdade, são eles que demonstram frieza e indiferença diante do sofrimento alheio. Essa inversão é um dos pilares morais do filme: quem realmente não tem coração?
Os “Sem Coração” não são apenas personagens periféricos — são o centro moral da narrativa. Eles representam os inocentes perseguidos, os laços familiares rompidos, e a esperança que resiste mesmo quando tudo parece perdido. E é justamente essa carga — a mais preciosa — que o filme nos convida a proteger.

A Mais Preciosa Das Cargas
2025
80 minutos
Indicado para maiores de 14 anos
Disponível para locação no Prime Video
Fonte: Gazeta do Povo













