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Como uma criança adquire a marcha e a motricidade fina

Se compararmos aos filhotes mamíferos herbívoros, constataremos o quão deficiente é o estado do bebê humano. A dependência ao adulto cuidador é pela sua sobrevivência. Sem o cuidado, não há sobrevivência

Texto: Ana Maria Iencarelli

Os filhotes humanos nascem muito incompletos. Se compararmos aos filhotes mamíferos herbívoros que em até 20 minutos de nascidos já estão de pé procurando seu alimento, constatamos o quão deficiente é o estado do bebê humano. A dependência ao adulto cuidador é pela sua sobrevivência. Sem o cuidado, não há sobrevivência.
A motricidade é patrocinada pelo sistema neurológico. A maturação neurológica se processa no sentido céfalo-caudal. Portanto, a primeira aquisição motora é a sustentação da cabeça, seguida pela coordenação óculo-manual. Também neste vetor de desenvolvimento, o acaso e a repetição dão lugar à intenção.
Sustentar a cabeça permite olhar o mundo que aparece à sua frente e levar a mão, e depois objetos, à boca proporciona sensações e descobertas que vão sendo cuidadosamente armazenadas. A boca nesta fase dos primeiros meses é o órgão mais competente para a exploração do entorno. E continuará ainda nesta primazia por alguns meses.
Em sequência, sempre seguindo a direção céfalo-caudal, a criança experimenta uma mudança radical de visão de mundo: o sentar. Esta aquisição dá a ela a possibilidade de ter como ponto zero o seu próprio corpo. Enquanto esteve no colo, sua visão é na altura dos olhos do adulto, e não conseguia acompanhar a mudança de cenário porque esta era decisão do adulto que a carregava. Quando está sentada no chão, ela tem uma nova dimensão do mundo, que se torna terra dos gigantes. Tudo lhe aparece gigantesco. O medo surge de maneira mais frequente e passa a controlar a mãe, ou substituto, pelo choro quando esta se ausenta de seu campo visual.
A vontade de se locomover se expressa bem antes do engatinhar. Os bebês se movem como lagartas em seus berços, buscando força e coordenação que precisarão para a etapa seguinte. O se pôr de pé, é uma operação complexa que requisita desejo e medo em igual quantidade. Tirar o pé do chão e arriscar colocá-lo à frente num passo, mexendo no precário equilíbrio experimentado ao ficar de pé. As quedas são frequentes nesta fase, e devem ser encaradas com atenção, mas com incentivo. Alguns ousam dar passadas desde que, ilusoriamente, segurem o paninho ou bichinho de estimação, o famoso ursinho querido, como se estivessem sustentados por eles.

Levar a mão, e depois objetos, à boca proporciona sensações e descobertas que vão sendo cuidadosamente armazenadas (Foto: Reprodução YouTube)

Os obstáculos evidenciam a boa saúde psicológica do bebê. Ao contrário do que se pensa popularmente, a grande maioria dos bebês tem no acervo de suas experiências motoras que deram certo e as que os levaram ao insucesso, um primeiro esboço de noção de perigo. Experiências de laboratório de psicologia já foram realizadas, com segurança, é claro, e demonstraram esta capacidade de ver o perigo. Colocaram-se bebês de oito meses, que engatinhavam, numa sala onde a mãe se encontrava depois de um buraco coberto com material transparente deixando ver o buraco embaixo. O que se observou é que os bebês iam engatinhando em direção à sua mãe, mas paravam diante do pseudoburaco, sentavam e choravam chamando a mãe, mas não avançavam, no que seria um possível tombo. Evidentemente, que os bebês não conseguem aferir o perigo de uma tomada elétrica.
As escadas, os degraus, os terrenos irregulares, são obstáculos que a criança, em geral, pede ajuda do adulto. Aprende a correr, mas não sabe frear. Esta manobra, o freio, é muito mais difícil de executar. A brincadeira de estátua é um treinamento deste frear.
Todas estas aquisições motoras devem ser banhadas de bons afetos, traduzidos por acolhimento, estimulação, incentivo quando dos tropeços, afago, confiança, e, responsabilidade. É preciso passar para a criança a real dimensão do tombo ou do erro de cálculo sem exagerar, e muito menos minimizar para que pare de chorar. Exagerar alimenta o medo, e minimizar alimenta o erro. A criança precisa começar a elaborar uma noção de perigo, para que ela se proteja cada vez mais com eficiência.
A dominância de lateralidade, destro ou canhoto, de mãos, pernas e pés, e olhos é um processo que vai sendo percorrido no sentido da preferência de um lado ao outro. Durante este processo, a criança, por vezes, usa as duas mãos ou os dois pés aleatoriamente, mas a precisão irá se alojar em um dos lados.
Algumas crianças permanecem ambidestras parciais ou até totais, este grupo em menor número. A lateralidade guarda relação direta com a dominância dos membros.

O se pôr de pé, é uma operação complexa que requisita desejo e medo em igual quantidade (Foto: Blog Leiturinha)

Também a preensão (ato de agarrar, pegar, segurar) por pinça fina, a oposição do polegar ao indicador na mão de dominância de lateralidade, é fundamental para a destreza no uso do lápis/caneta, do pincel, do bisturi/agulha de sutura. Muito de nossa cultura, muito de nosso acervo de conhecimento dependem desta habilidade de segurar objetos que produzem escrita, arte, e cura médica. Arrastar o dedinho em tela de “conquistas” virtuais não desenvolve a psicomotricidade.
Pular, correr, saltar obstáculos, o equilíbrio do corpo em movimento ou parado será adquirido gradativamente, pela força do exercício de repetição. As brincadeiras ao ar livre, além da prática de esportes, facilitarão estas aquisições. Nada melhor do que andar em cima de um muro para testar esta habilidade de autocontrole e de comando corporal. E toda a psicomotricidade construirá a imagem corporal, e fará parte da consciência do eu. Afinal, o corpo é o nosso único bem inalienável, nossa única propriedade, nossa representação de vida.
Mas, como garantir este desenvolvimento tão complexo quando as crianças permanecem cada vez mais e por mais horas, sentadas com um objeto tecnológico nas mãos para não incomodar os adultos? Os movimentos de dedinho são monótonos, pobres, repetitivos e produzem tendinites precoces.

P.S. Continuamos na próxima semana.

Ana Maria Iencarelli
Psicanalista
Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes
Presidente da ONG Vozes de Anjos

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