Educação

História — Identificados a última sobrevivente de um navio negreiro e seus descendentes

Aos dois anos de idade, ela estava entre os mais jovens cativos do Clotilda. Agora, seus netos estão conhecendo sua vida e seu legado

Ela tinha apenas dois anos de idade quando chegou a Mobile, no Alabama, EUA, em julho de 1860, cativa a bordo do infame Clotilda, o último navio de africanos escravizados conhecido por trazê-los para a América. Ela morreu em 1940, aos 82 anos, e foi a última sobrevivente conhecida do último navio de africanos escravizados de que se tem notícia. O nome dela era Matilda McCrear.
Há apenas um ano, a mídia anunciou que havia sido encontrada outra cativa do Clotilda — Redoshi, também conhecida como Sally Smith — que seria a sobrevivente mais velha. Antes dela, o título pertencia a Cudjo Lewis. Agora, depois de meses de pesquisa, consegui constatar que McCrear viveu mais que os dois.
A neta de McCrear, Eva Berry, agora com 92 anos, lembra-se dela como uma mulher de pele escura e cabelos longos. “Ela me contou sobre sua mãe e suas irmãs no navio”, lembra Berry, “como chegaram a Mobile e a saída do navio após serem compradas”.
Seu neto, Johnny Crear, de 83 anos, me contou que seus antepassados a descreviam como uma “senhora impetuosa” e falavam sobre as “marcas” em seu rosto.
As cicatrizes faciais fornecem claras evidências da origem de McCrear, diz Olabiyi Babalola Yai, especialista em culturas africanas. Elas também revelam o nome dela.
“Ela era uma iorubá, como mostram suas ilà — ou marcas étnicas do tipo àbàjà — afirma Yai. E as marcas “significam que seu oriki, ou nome, era Àbáké — ‘nascida para ser amada por todos’”. Esse era, de modo comovente, o desejo que seus pais tinham para uma bebê que logo teria que enfrentar uma miséria inconcebível.

O retrato de McCrear neste álbum de fotos da família possui a legenda “Bisavó Tilly Crear” (Foto: Cortesia de ilustração fotográfica das famílias Crear e Jackson)

Travessia dolorosa

A jornada de Àbáké à escravidão na América começou quando o exército de Dahomey invadiu sua cidade e levou seus prisioneiros até o porto de escravos de Ouidah, no atual Benin. Lá, William Foster, capitão do Clotilda, partiu para o Alabama com 110 homens, mulheres e crianças trancados no porão do navio.

O neto de Matilda, Johnny Crear, participou ativamente da luta pelos direitos civis em Selma (Foto: Elias Williams/National Geographic)


Entre as pessoas a bordo estava uma jovem mãe e suas quatro filhas, um homem que se tornaria padrasto delas e um sobrinho. Àbáké, mais tarde batizada de Matilda, era a mais nova das meninas. Ela era jovem demais para se lembrar da travessia infernal que durou seis semanas. Mas sua mãe, que recebeu o nome de Gracie, contou-lhe mais tarde sobre a viagem angustiante. Ao longo dos anos, McCrear recontava o que haviam lhe contado: como as crianças aterrorizadas se apegavam à mãe, choramingando por horas no escuro. O sobrinho de Gracie morreu durante a viagem, assim como o filho de um vizinho.
Quando os 108 sobreviventes da travessia chegaram a Mobile, a maioria foi forçada a trabalhar em plantações locais. Cinco anos depois, após o término da guerra civil, muitos dos africanos libertos se uniram e construíram sua própria comunidade, que era unida e passou a ser conhecida como Africatown. Alguns de seus descendentes moram lá até hoje.
Até hoje, pouco se sabe sobre o destino de cerca de 25 cativos do Clotilda que foram “vendidos rio acima” para trabalharem em plantações no Cinturão Negro do Alabama.
Gracie e suas duas filhas mais novas — a criança Matilda e Sallie, de 10 anos — foram vendidas ao Sr. Memorable Walker Creagh, agricultor, médico e representante do estado. As duas filhas mais velhas foram destinadas a outro comprador e sua família nunca mais teve notícias delas. Já trabalhando na plantação, Gracie foi morar com um homem chamado Guy, um companheiro sobrevivente do Clotilda.
Matilda era uma rebelde nata e uma de suas primeiras lembranças foi ter fugido de seus capturadores. Ela e Sallie se esconderam no pântano por várias horas, mas foram descobertas pelos cães do capataz que latiram em aviso.
Em 1865, os africanos escravizados foram libertados após o colapso da Confederação e a família adotou o nome Craigher. Na época, Athens, no condado de Dallas, abrigava 368 proprietários de terra e comerciantes brancos e mais de três mil negros sem terra. Os suprimentos necessários eram adquiridos em uma loja administrada por James McDonald, o comerciante e agricultor mais rico da cidade de Athens. Gracie e Guy falavam pouco inglês e se comunicavam principalmente por gestos, então a bilíngue Matilda traduzia a lista de compras: normalmente itens como carne, farinha, tecido, tabaco e rapé.

Um mural do Clotilda decora uma contenção de concreto em Africatown, a comunidade perto de Mobile fundada por alguns dos sobreviventes do navio (Foto: Elias Williams/National Geographic)

Uma criança se torna mãe

Nenhuma lápide identifica sua sepultura, mas acredita-se que Matilda tenha sido enterrada aqui, no Cemitério Martin Station, perto de Safford, no Alabama (Foto: Elias Williams/National Geographic)

Com apenas 14 anos, Matilda deu à luz uma filha, Eliza. O pai, Bob Mose, era um homem branco. A escravidão pode ter sido abolida, mas as mulheres negras eram frequentemente sujeitadas ao comportamento abusivo de homens brancos e as circunstâncias nas quais Matilda se tornou mãe adolescente não são conhecidas. Matilda teve mais duas filhas mestiças durante esse período.
Em dezembro de 1879, Gracie morreu de tuberculose. De acordo com sua certidão de óbito, ela tinha 60 anos e, dadas as dificuldades que havia sofrido, é possível que sua aparência fosse de uma mulher idosa. Mas, na verdade, ela tinha apenas quarenta e poucos anos.
Matilda, agora sozinha, se mudou com sua família para Martin Station, no Alabama, depois de um tornado devastador ter transformado Athens em uma cidade fantasma. Ela conheceu Jacob Schuler, um fabricante de livros alemão que emigrou para os Estados Unidos em 1865 e se tornou tudo aquilo que os negros repudiavam e temiam, e com razão: policial, xerife e capataz.
Nos 17 anos seguintes, Matilda e Schuler tiveram sete filhos. Segundo a neta Eva Berry, “vovô Schuler” teve um bom relacionamento com os filhos e provavelmente seu relacionamento com Matilda não era conhecido na cidade. Quando questionada sobre o casamento muitos anos depois, Matilda desviou a pergunta com uma risada.
Seus filhos — Frederick, Matilda, Sylvester, Emma, Johnnie, Joe e Thomas — junto com suas três meias-irmãs (quatro filhos de Matilda haviam morrido ainda crianças) tornaram-se irmãos muito unidos. Mais tarde, deram aos próprios filhos o nome de seus irmãos, irmãs, tios e tias. O sobrenome da família, no entanto, teve infinitas variações: Craigher, Crear, Creah, Creagh, Creagher, McCreer e McCrear. (Essa última variante se tornou o sobrenome preferido de Matilda).

O pai de Johnny Crear, Joe (à esquerda), seu irmão Edward (no centro) e sua mãe Julia posam para um retrato em 1954 (Foto: John Crear)

Seguindo em frente

Na virada do século 20, a situação de McCrear havia melhorado drasticamente e ela conseguiu arrendar uma fazenda. Ela pode ter tido sucesso devido à sua própria garra, ou em parte porque Frederick, Matilda e Sylvester já tinham idade suficiente para trabalhar com ela. É até possível que Schuler tenha ajudado a sustentar a família.
Durante a década seguinte, uma praga conhecida como bicudo-do-algodoeiro se alastrou pelas lavouras de algodão e alguns dos filhos de McCrear migraram para a cidade em busca de oportunidades melhores. Emma mudou-se para Selma, Eliza para Mobile. John se estabeleceu perto de Birmingham, onde trabalhava para a ferrovia. Em 1917, quando questionado sobre sua raça pelo recrutamento militar, ele respondeu “africano”.
McCrear ficou em Martin, morando com seu filho mais novo, Thomas. Seu filho Joe morava a três casas da sua. Sua filha Sallie, agora mãe viúva de quatro filhos, também se estabeleceu nas proximidades. Sylvester morava a cinco casas de distância de seu pai de 71 anos, Jacob Schuler. Em 1920, mais de 20 membros da família estendida residiam em Martin.
Em 1931, os netos de McCrear lhe contaram que veteranos da Primeira Guerra Mundial haviam recebido uma gratificação há tempos devida pelo serviço militar prestado. As notícias levaram McCrear, então com 73 anos, a se levantar e caminhar 28 quilômetros até Selma para dizer ao governo que ele também precisava saldar uma dívida com ela.

Joe Crear, um dos filhos de Matilda, tornou-se um empresário de sucesso em Selma (Foto: John Crear)


Mais tarde, uma reportagem do jornal de Selma informou que “Tildy McCrear” achava que por ela ter sido “arrancada de sua casa na África, ainda criança, teria direito a um pequeno reembolso”. Como prova de sua origem, ela apresentou três cicatrizes na bochecha esquerda.
Quando lhe disseram que nenhuma indenização lhe era devida, ela manteve sua dignidade, afirmando ao juiz que ela acreditava não precisar de mais nada além daquilo que já possuía. Ela havia se posicionado com ousadia e sua batalha por justiça continuaria sendo travada com ainda mais força por seus descendentes.
Segundo o jornal, McCrear também queria dissipar a crença de que Cudjo Lewis, um dos fundadores originais de Africatown, era o único sobrevivente ainda vivo do Clotilda — lembrando que ela e Sallie Smith (Redoshi) ainda estavam muito vivas.
McCrear confidenciou, no entanto, que visitar Lewis tinha sido um dos eventos mais importantes da sua vida. Após ter perdido a mãe, o padrasto e a irmã, Lewis representava um dos últimos vínculos com o passado dela e alguém com quem ela poderia compartilhar lembranças. Ela também revelou que havia visitado, provavelmente com Lewis, o lugar no condado de Clarke onde desembarcaram do Clotilda 71 anos antes.
Em 1937, McCrear se mudou para Selma para morar com sua neta, Emma. Em 1º de janeiro de 1940, o doutor Nathaniel D. Walker, um médico negro, foi chamado após ela sofrer um derrame. Sempre uma sobrevivente, ela viveu até 13 de janeiro. Foi enterrada em Martin três dias depois.

Retrato de Clara e Thomas, filhos de Joe Crear (Foto: John Crear)

Legado vivo

O neto de McCrear, Johnny Crear, claramente herdou seu espírito e coragem. Ele saiu de Selma para frequentar a Universidade Xavier em Nova Orleans, com a intenção de nunca mais voltar à sua cidade natal. Mas, no espírito de sua alma mater — a única universidade católica negra do país — ele finalmente decidiu “retribuir” à sua comunidade e voltou para casa.
Durante o movimento dos Direitos Civis, ele foi preso sob acusações de violação e agressão. O crime cometido: impedir um homem branco que tentava enfiar uma cobra viva em sua garganta.
Em 7 de março de 1965, — data posteriormente conhecida como o Domingo Sangrento pela violência racial que abalou Selma — Johnny tinha 28 anos e era assistente administrativo no Hospital Bom Samaritano, onde trabalhava incansavelmente para admitir os diversos manifestantes feridos que buscavam atendimento.
Crear se tornou administrador de um hospital que prestava atendimento a pessoas que não tinham condições financeiras, foi Cidadão do Ano pelo Rotary Club e líder comunitário, tendo atuado em diversos conselhos e ajudado a integrar a comunidade católica. Quando compartilhei minha pesquisa sobre a vida de sua avó, ele se sentiu dividido — sentia orgulho da coragem e resiliência dela, mas também ressentimento por tudo que ela havia sido forçada a passar.

“Sinto-me triste pelo que aconteceu com ela, mas feliz em conhecer mais sobre sua história”, diz a bisneta de Matilda, Yolande Calhoun (Foto: Elias Williams/National Geographic)


“Meu pensamento inicial”, ele disse, “foi que essas informações me ajudaram a saber como ela foi sequestrada, vendida, trazida para este país e novamente vendida como escrava. Mas essas mesmas informações também me deixaram muito bravo. As pessoas leem sobre a escravidão e não se solidarizam, mas quando é a sua família que está envolvida, tudo se torna mais próximo e muito real”.
Um dos nove netos de Johnny Crear, Paul Calhoun III, de 27 anos, cresceu em Atlanta. Ele ingressou na faculdade e depois em um curso de pós-graduação da Wharton School of Business na Universidade da Pensilvânia — e, como seu avô, voltou para sua cidade natal, no sul do país. A reação dele à história de sua antepassada? “O orgulho que tenho da minha família aumentou quando aprendi mais sobre minha tataravó e sua perseverança em meio ao deslocamento, à marginalização, ao trauma e à adversidade”, conta ele. “Esse orgulho cria certa pressão pessoal para que também tenhamos perseverança na vida pessoal e pública”.
Questionado sobre a perspectiva histórica mais ampla, Calhoun disse o seguinte: “Acredito que a história de Matilda demonstra as tentativas de suprimir as vozes de pessoas que foram escravizadas e de seus descendentes. Espero que ajude a contextualizar melhor a história do tráfico ilegal de negros escravizados e que sirva como mais um relato de alerta sobre a marginalização de pessoas por um governo”.
Há 160 anos, com o Clotilda submerso no rio Mobile, os Crears, com todas as variações de seu nome, lutam bravamente contra o destino que lhes foi imposto. A história dessa família fala sobre mães africanas resilientes que cuidaram de seus filhos desde o navio negreiro até os campos de algodão; sobre crianças obstinadas que saíram em busca de vidas melhores; sobre netos e netas que prosperaram e os filhos que tiveram. É uma história afro-americana de tragédia e perda; de migrações, forçadas e voluntárias; de fortes laços familiares, determinação e conquista.

Filho de Yolande Calhoun, Paul diz que a história de sua tataravó inspira orgulho em sua família e também “cria certa pressão pessoal para que tenham perseverança” (Foto: Elias Williams/National Geographic)

Fonte: National Geographic Brasil

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