Comportamento & Equilíbrio

Desenvolvimento Afetivo, como nos tornamos humanos — Parte VI

Os índices apontam para números que variam entre 75% e 85% de casos de abuso sexual intrafamiliar, sendo a maior quantidade de pais, seguidos de padrastos, avôs, tios, irmãos mais velhos

“Se ninguém teve compaixão comigo quando eu era criança e precisava de proteção, não tenho compaixão por ninguém”.

“Se quem devia me ensinar certo e errado, fazia uma coisa mais errada comigo criança, eu é que vou dizer o que é certo ou errado na vida. Essa história de certo e errado não existe”.

“Se quem eu confiava e amava me violentava, não confio em ninguém”.

“Ninguém presta”.

O sistema do desenvolvimento afetivo é afetado desde o abandono do recém-nascido até as atitudes explícitas de violência física e sexual recebidas durante a infância. A ruptura do vínculo visceral/afetivo da mãe deixa um registro cuja angústia de separação e falta pode permitir, ou não, uma reparação no sistema de afetos.
Não podemos esquecer que o abandono pode ser intrafamiliar, ou seja, uma negação de afeto por aquela criança, negação parcial ou quase total, consciente ou até inconsciente, que trará a repercussão do sentimento de rejeição para aquela criança. São inúmeras as formas de disfarce da rejeição. Até mesmo quando o afeto se transforma em higienização excessiva, ou exagero de disciplina, ou interdição ao colo da mãe, ausência de contato e carinho, naturais e necessários na infância.
A incapacidade de sentir empatia, de se colocar no lugar do outro é uma sequela da ausência, da instabilidade ou da violência do afeto. O fator quantitativo, pouco ou nenhum afeto, por exemplo, trará uma alteração de ordem da carência, do pedido continuado. A instabilidade, ou seja, a intermitência de afeto fomentará uma insegurança afetiva, uma desconfiança, quando recebe tem um medo de não ter no momento seguinte, então não usufrui do afeto recebido, como que se preparando para uma frustração que sempre ocorria na relação afetiva preferencial. São crianças que sofrem pela falta que aprenderam que sucedia o recebido.
Por outro lado, a qualidade do afeto recebido faz tomar outro percurso. Os afetos advindos de violência física e sexual sofridas, como já falei anteriormente, patrocinam a não confiança como traço de perfil daquela criança. Este traço, que multiplica exponencialmente a angústia do medo será predominante não apenas nas relações de culpa que ficaram impressos na mente, a criança cresce evitando as situações relacionais para não sentir aquele medo e aquela culpa, sempre associados, que se segue à tentativa de confiança no outro.

Abuso infantil (Foto: https://observatorio3setor.org.br/)

Nos casos de violência física, o estrago pela opressão pode alojar aquele indivíduo numa arena onde há um reducionismo às duas posições apenas, opressor x oprimido. Enquanto que, no caso da violência sexual, este Poder vem misturado à sedução, com privilégios, ameaças e muita intimidação. O pacto do segredo é determinante, e, muito difícil de ser rompido. Assim, a criança, desde muito pequena, aprende a dissimular, a ocultar o que se passa entre ela e aquele adulto incestuoso.
Os índices apontam para números que variam entre 75% e 85% de casos de abuso sexual intrafamiliar, sendo a maior quantidade de pais, seguidos de padrastos, avôs, tios, irmãos mais velhos.
Por uma questão de sobrevivência psíquica, a criança segue guardando segredo. O saldo do jogo, que se estabelece diuturnamente, “ser enganado x enganar os outros”, alimenta, também diuturnamente, a culpa e o desprezo por si mesmo.
A criança que é abusada continuamente por alguém que ama e obedece, pessoa de referência para ela, sentirá uma mistura de constrangimento e triunfo em relação às outras pessoas de referência.
A autoimagem passa, portanto, a habitar a sombra de se ver como uma enganadora. Ela engana a mãe, a professora, a avó. Seu compromisso com a ocultação da autoria dos abusos torna-se a base de sua autoestima degradada, que este indivíduo carregará como um fardo.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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