Cultura

Carolina Maria de Jesus é celebrada em exposição e relançamentos

“Ela é um ponto de confluência de um outro Brasil”, diz Tom Farias, seu biógrafo

A mineira Carolina Maria de Jesus é uma das mais importantes escritoras da história da literatura brasileira: dona de um texto pungente e original, sua escrita carrega não só o talento de uma autora brilhante, mas também a força de sua biografia, a partir de uma das mais duras e incríveis histórias de uma artista em todo o século XX. Apesar dos reconhecimentos que serão naturais ao redor de seu nome, a autora, falecida em 1977, ainda tem 80% de sua produção inédita, e seu nome costuma ser acompanhado de uma série de clichês apressados ​​e mesmo preconceituosos diante de uma mulher negra, de origem extremamente pobre, que relatou de forma intensa e luminosa sua vivência entre as tragédias sociais do País em textos que foram lidos por reis, intelectuais, presidentes e papas.
A história é tão conhecida quanto extraordinária: “Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada” foi o livro editado por Carolina junto ao jornalista Audálio Dantas, que conheceu a autora quando esta ainda trabalhava como catadora de papel e ferro-velho na favela do Canindé, à beira do Rio Tietê, em São Paulo. Encantado com a força e a qualidade dos textos fornecidos em cadernos manuscritos, Audálio publicou uma reportagem sobre Carolina para, em seguida, organizar os escritos em livro. Lançada em 1960, a publicação, trazendo, através dos diários, o cotidiano da miséria e a vida na favela do fim dos anos 1950, se tornou um verdadeiro fenômeno sociológico e de vendas.

Carolina Maria de Jesus em agosto de 1960 (Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo)

“Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o previlegio de gosar descanço. Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a sorte. Catei dois sacos de papel. Depois retornei, catei uns ferros, uma latas, e lenha”

Foi a trajetória da neta de escravos que se tornou um dos maiores fenômenos literários de nossa história que o autor e pesquisador Tom Farias contou, em seu livro “Carolina: uma biografia”, de 2018: a mesma vida que se tornou tema da exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros”, inaugurada no último dia 25 de setembro para ocupar dois andares do Instituto Moreira Salles (IMS), de São Paulo. Além da mostra, uma obra de Carolina será relançada — ou, enfim, lançada — pela Companhia das Letras: “Casa de Alvenaria”, seu segundo livro, já está nas livrarias em dois volumes.

Carolina na favela do Canindé (Foto: Audálio Dantas)

Carolina ganhou o mundo, mas sua história foi marcada por curvas complexas e mesmo trágicas: consta que a autora não recebeu grande parte das altas quantias reservadas a ela por conta dos direitos autorais de seus livros e, ao fim da vida, encontrava-se novamente em situação de pobreza. Sua relação com Audálio Dantas foi marcada por rompimentos, acusações, pedidos de desculpas e tributos e, no mesmo sentido, o valor de uma das mais importantes e bem-sucedidas autoras brasileiras até hoje é pouco reconhecido por parte da crítica, da academia, da imprensa, dos especialistas. Conversamos com Tom Farias sobre o legado de Carolina, sua escrita, sua vida, a relação com Audálio, os lançamentos e mais.

O Brasil exposto por Carolina em sua obra

“O Brasil é um grande quarto de despejo, e uma sociedade que não está nem aí pra esse quarto de despejo. Ou seja: ninguém quer acabar com esse quarto de despejo, ele é voluntário, é necessário pra manter esse status quo. O Brasil naturalizou tudo isso”.

Carolina, o Rio Tietê e o Canindé ao fundo (Foto: Audálio Dantas)

A escrita e o estilo de Carolina

“Ela representa um novo recorte do que nós pensamos desde sempre sobre literatura na América brasileira. A literatura sempre foi feita sob uma ótica europeia, não brasileira: você vai a Portugal e eles dizem que nós não sabemos falar português. A Carolina é um processo de subversão — ela é uma subversiva dentro desse processo que começou lá atrás. A linguagem dela veio se apropriar de uma voz que não era de forma nenhuma ouvida no Brasil, que traz não só a questão regional, mineira, mas a presença muito forte do negro, sobretudo de origem Bantu, tanto de Angola quanto de Moçambique, que ela carregou, sobretudo, pelo contato com o avô.
De alguma forma, aquilo que a gente acha que é erro de gramática ou morfologia é, na verdade, uma forma de se referendar a essa ancestralidade um pouco acima do chão, como diria Ferreira Gullar. Eu penso que essa é a Carolina, é a marca dela. Mudar essa marca, como quer a academia, que é a produtora de outro conhecimento com o qual a Carolina se choca, é também mudar a Carolina em sua essência. Está tudo ali, o que ela quer dizer está ali. O que se tem que buscar em Carolina é a filosofia africana, os conhecimentos ancestrais que ela carrega. Na poesia é a redondilha, sobretudo a redondilha maior. A Carolina traz toda dicção como um talento de bom ouvido, pois lia tudo — de bula de remédio a Camões”.

“Fiquei pensando que precisava comprar pão, sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não dava! Cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa e exausta. Pensei na vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta”.

Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus (Foto: IMS)

Carolina e o cânone literário

“A Academia está incomodada com Carolina porque é preciso mudar o cânone. É preciso jogar fora um cânone e construir um outro a partir de dicções novas, a partir da Conceição Evaristo, da Maria Firmina dos Reis, Teixeira e Souza, que foi criador do primeiro romance no Brasil — por que esse homem não está em um pedestal, se ele criou o primeiro romance no Brasil? É um pouco por aí”.
Com o sucesso do livro, Carolina pôde viver, enfim, na “Casa de Alvenaria” que batiza seu segundo livro junto ao subtítulo de “Diário de uma ex-favelada” — ela e seus três filhos, João José, José Carlos e Vera Eunice, se mudaram, inicialmente, para o bairro de Santana, na Zona Norte de São Paulo e, em seguida, para Parelheiros, região árida da Zona Sul da cidade. Carolina publicaria, do próprio bolso, os livros “Pedaços de Fome” e “Provérbios”, em 1963 e, ainda que outras obras tenham sido lançadas postumamente, boa parte de seus escritos seguem inéditos — segundo consta, divididos em sete romances, sessenta textos curtos, cem poemas, quatro peças de teatro e doze letras de samba. Para escrever a biografia, Tom Farias não só estudou essa obra inédita, como também conversou diversas vezes com os principais personagens dessa história.

Carolina e a subversão da tradição literária

“Quando eu falo da ‘subversão’, eu estou falando de 56% da população brasileira — da Carolina surgindo como uma voz de 56% da população. Isso representa um perigo para o establishment branco, de origem europeia, com todo seu passado que mantém os privilégios até hoje — na academia, nos meios de comunicação, na universidade, o governo de um modo geral. Carolina vem representar essa fagulha que pode contaminar em chama todo o milharal. Precisava de uma mulher pra referendar tudo isso, pra ser o culto do Cruz e Sousa, que falava seis idiomas, pra ser o pensador que era o Mário de Andrade, que queria reorganizar o Brasil a partir do Brasil, e chegamos até a Carolina, que foi confinada num barraco de cinco metros quadrados, e fez uma revolução a partir do seu barraco”.

“Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos (…) A tontura do álcool nos impede de cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”

Leonel Brizola ao lado de Carolina (Foto: Wikimedia Commons)

Equívocos históricos

“O primeiro equívoco é achar que a Carolina era analfabeta: você vê, Machado de Assis também era autodidata. A segunda coisa é a seguinte: Carolina viveu 62 anos, mas só 12 na favela. Eu não posso dizer que a Carolina era uma mulher ‘de favela’. Ela viveu mais de 40 anos fora da favela. Então porque a Carolina é uma “mulher favelada”? A academia e até os estudiosos da Carolina falam dela como ‘a poeta do lixo’, ‘Cinderela da favela’, da ‘poética do resíduo’: acho que tudo isso só acaba colocando camadas a mais na personagem e tirando foco do que é principal, que é a obra. O principal é a obra da Carolina, que ainda está inédita em sua maioria. Os romances estão inéditos, as peças de teatro. E tudo isso vem de uma visão racista.
Há uma estrada muito longa ainda, mas há uma coisa fundamental que ninguém ainda quer fazer, que é conhecer a Carolina. A Carolina tem um universo de estudos grande, mas sobre um livro dela, que é o ‘Quarto de Despejo’ — e a Carolina? O Quarto de Despejo vai de 1955 até 1960, representa um período muito limitado, dos anos que ela viveu no Canindé. Tem gente que acredita que o Canindé nem existe. Você tem que ter a liberdade pra dizer que a Carolina também não era boa, e não se tem essa liberdade. Se eu colocar nas redes sociais que a Carolina não era boa, que eu não gostei disso da Carolina, ferrou. Não se pode discordar da Carolina, mas é preciso discordar dela também, pra humanizar e ampliar o universo dela”.

O pensamento crítico de Carolina

Carolina pronta para embarcar em um avião da Air France (Foto: Arquivo Nacional)

“A Carolina é uma intelectual, não é uma analfabeta. É uma pessoa que pensou o Brasil, no recorte que parte do Gilberto Freyre, vem pro Sérgio Buarque e ‘Raízes do Brasil’, pega um pouco de Florestan Fernandes, até um pouco do Fernando Henrique Cardoso. Carolina vem cumprir esse lugar e ecoar, sobretudo, a questão da fome. Ela consegue, antropologicamente e à moda dela, repaginar a discussão de Brasil. Era uma página que estava colada no livro, e de repente descobriram ela ali — é um palimpsesto dessa discussão toda, mas que derruba tudo. O problema é aceitar a vida pregressa da Carolina: favelada, mãe solteira, pobre — quando as pessoas olham isso, mesmo as com o dito pensamento progressista, não aceitam, e são essas pessoas que formam a academia no Brasil”.

“O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la […] Eu amanheci nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer … Eu não ia comer porque o pão era pouco. Será que é só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro? Um leito em Campos do Jordão. Eu quando estou com fome quero matar o Janio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos politicos”

A relação com Audálio Dantas — e o papel do jornalista

“Eu acho que é ‘a partir’ do Audálio Dantas, não é ‘por causa’ do Audálio. Eu entrevistei o Audálio seis vezes, e conversei muito minuciosamente sobre tudo, inclusive sobre o ‘Quarto de Despejo’, e há quinhentas versões pra história, até do Audálio. Eu digo sem medo de errar que talvez nós não tivéssemos a Carolina sem o Audálio, porque era muito difícil pra ela, já em 1958, com os filhos crescendo, as necessidades aumentando, ela envelhecendo, mostrando pontos de doença, as gravidezes dela prejudicaram muito a saúde dela. Quando ela falava que a fome era amarela era porque ela estava de fato amarela, como uma icterícia. Ela estava no limite, o barraco chovia dentro, e a possibilidade dos cadernos se perderem era muito grande.
O próprio Audálio foi muito pressionado. A Carolina falou em uma entrevista que o Audálio era instado pelos amigos a abandoná-la — porque ele ficou tão maluco, falando dela pra todo mundo, querendo editar a Carolina, e não conseguia. A última rejeição dele foi da própria editora O Cruzeiro, que achou aquilo uma bobagem — até que caiu nas graças da Editora Francisco Alves. Pensaram numa edição menor, até cinco mil exemplares, mas aquilo teve uma repercussão, e Carolina começou a ser chamada pra entrevistas, e isso foi aumentando a expectativa, até que a coisa virou uma loucura, foi a 10 mil exemplares, começou a vender 2.500 livros por dia. Talvez não exista ninguém, a não ser Paulo Coelho, que tenha vendido 2.500 exemplares por dia como a Carolina chegou a vender naquela época.

O escritor Tom Farias, autor de “Carolina: Uma Biografia” (Foto: Facebook)

Erram muito aqueles que criam polaridades entre a Carolina e o Audálio. Isso foi criado nos anos 60, e fez com que os dois, que tinham uma amizade muito honesta, rompessem. Quando eles rompem o Audálio faz um documento pra que a Carolina assinasse com testemunhas que dizia que a partir do dia 31 de dezembro de 1965, se não me engano, ele não mais tomaria nenhum envolvimento com a Carolina — e diz textualmente: “eu sempre trabalhei pra você de graça, e tem um monte de gente ganhando dinheiro nas suas costas. Eu trabalhei, compilei, fiz tudo que pude, e agora vêm os outros fazer propostas e você aceita — e ainda estou sendo passado como espertalhão e aproveitador”. Essa, então foi a maior mágoa dele.
Mas, em 1976, em uma entrevista, ela disse que queria rever tudo que tinha falado do Audálio, que tinha sido injusta e que, sem o Audálio, ela não teria chegado a lugar nenhum: queria pedir desculpas. Ela morreu logo em seguida, em 1977, alguns meses depois. O Audálio não a via desde 1965, e só foi reencontrar Carolina já morta”.

“A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não casei e não estou descontente”

O impacto e a importância de “Quarto de Despejo”

“É a obra que imortaliza Carolina, uma obra fundante. Mas é preciso encarar o ‘Quarto de Despejo’ como literatura, e isso diferencia muita coisa. Da mesma forma que Anne Frank é literatura, mas só escreveu diário; que Getúlio Vargas escreveu diários e foi pra Academia Brasileira de Letras (ABL), é preciso encarar ‘Quarto de Despejo’ como obra literária. É aquele livro que você lê na infância e lê também na maturidade. Obviamente uma pessoa jovem que lê o livro, quando for reler, já madura, terá uma outra visão da sociedade, e poderá compreender coisas maiores que estão ali, que ela não compreendia antes por falta de conhecimento e de vivência — da universidade da rua, do dia a dia.
Eu acho que o que o Audálio fez, positivo ou negativo, como queiram, é a obra fundante dela. Foi lida por papa, John Kennedy, e príncipes. São mais de cinco milhões de exemplares vendidos — e ela segue vendendo entre 100 a 150 mil exemplares hoje, ainda entre os mais vendidos de não ficção: é isso que permanece”.

As palavras do biógrafo deixam claro, portanto, o sentido profundo — sociológico e histórico — do acontecimento e do fenômeno que foi Carolina Maria de Jesus, mas também apontam a base de toda essa trajetória na escrita, no talento, no esforço literário, no texto da autora. “Quarto de Despejo” é um livro de formação, mas também de reforma — capaz de incidir de forma profunda sobre o Brasil, sua população, sua desigualdade, seu racismo, sua história. A exposição “Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros” fica no IMS Paulista até dia 30/01/2022 com o objetivo de trazer ao público a autora através de “sua produção autoral que incluiu a publicação, em vida, de outras obras, além de destacar suas incursões como compositora, cantora, artista circense: uma multiartista” — as maiores informações da mostra podem ser acessadas aqui. O livro de Tom Farias, “Carolina: uma biografia”, foi publicado pela Editora Malê.

Carolina e Audálio na favela do Canindé (Foto: Oboré/Reprodução)

“15 de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar”

As novas edições

“Existe muita coisa inédita, capaz de mudar muito do que se fala sobre a Carolina. As edições novas são tuteladas, e elas precisavam passar por um processo mais isento. É preciso ter muita isenção, pois se publicar só por publicar, só quem ganha dinheiro é a Companhia das Letras. Um dia você vai ter as Obras Completas de Carolina Maria de Jesus, talvez eu não esteja nem vivo quando isso acontecer, mas aí vão ter vários estudos sobre essa obra, como têm mais de mil estudos sobre Capitu, sabe?
A Carolina é uma revolução, uma voz que vai impactar muito nas vozes que estão chegando. As cotas hoje vão estabelecer, em dez, vinte anos, um novo paradigma para a Academia — a Academia vai precisar se rever muito, no sentido de que há um elemento fundante que precisa ser resgatado, pelo que a sociedade fez com negros e índios. Temos um governo que retroalimenta tudo isso, estimula o racismo, o presidente da Fundação Palmares que é contra a própria fundação que administra, que não gosta de negros, é um pouco por aí — e a Carolina é o ponto de confluência de um outro Brasil. Se ninguém der jeito, vai haver um cismo. Não sei se um Haiti, espero que não, mas uma proposta muito revolucionária que pode levar a uma espécie de revanche”.

Carolina assinando a primeira edição do “Quarto de Despejo” (Foto: Arquivo Nacional/Correio da Manhã)

“Eu cato papel, mas não gosto. Então eu penso: Faz de conta que eu estou sonhando”

Fonte: Hypeness

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