100 anos da Semana de Arte Moderna: da mesa de bar à antropofagia

Há 100 anos, escritores famintos da Semana de 22 exaltaram a comida em suas obras e inspiraram gerações
Os escritores Oswald e Mário de Andrade se conheceram em 1917. Juntos, planejaram a Semana de Arte Moderna, que estreou há exatos 100 anos, em 13 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal. Irreverentes e contestadores, apresentaram a uma desconfiada elite paulistana um novo olhar sobre a literatura, música, escultura, artes plásticas e arquitetura.
A ousadia desses jovens artistas passou também pela mesa, como atesta o historiador Rudá K. de Andrade, que acaba de publicar um saboroso livro sobre a intersecção entre literatura e gastronomia na vida e obra do seu avô, Oswald: ‘A Arte de Devorar o Mundo’, que emprestou a esta reportagem algumas de suas belas ilustrações. A obra traz, passo a passo, as receitas de vatapá, feijoada e quindim, as comidas preferidas do escritor modernista — que aliás, batizou um dos mais tradicionais bares da capital paulista.
Já Mário de Andrade era um colecionador de cardápios. E a artista plástica Tarsila do Amaral, que assina a tela Abaporu, teria se inspirado num banquete com rãs como prato principal para chegar às bases do movimento antropófago — que propunha desconstruir toda a herança cultural estrangeira, em nome de um contato mais íntimo com as raízes do Brasil.
Para além de telas, partituras e livros, revelam-se também nos pratos e cozinhas o testemunho de uma das principais revoluções culturais de nosso País.
O ponto chic de Oswald de Andrade
O Brasil se recuperava de uma grande pandemia causada pela Gripe Espanhola, e por isso as ruas ferviam como nunca. “Os amantes da vida noturna voltaram a frequentar teatros, restaurantes, bares e locais que atraíam a boemia paulistana, formadas principalmente por estudantes, artistas e intelectuais”, explica Iacocca.
Em 1922, Mário de Andrade lançou o conjunto de poemas “Paulicéia Desvairada” e abriu a Semana de Arte Moderna. Assim ele descreveu a São Paulo daquele tempo: “as ruas se desenrolando, rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos…”.
Durante o burburinho gerado pela semana modernista, uma lanchonete abria suas portas no Largo do Paissandu. O lugar não tinha nome, mas ficou famoso por ostentar uma decoração luxuosa, com lustres franceses e balcão de mármore de Carrara.

Também apaixonado pela pauliceia, foi Oswald de Andrade o responsável pelo batismo do estabelecimento. “De tanto ouvir ‘vamos naquele lugar chique’, o escritor sugeriu ao proprietário que adotasse o nome Ponto Chic”, conta o jornalista Angelo Iacocca, escritor do livro “Ponto Chic: um bar na história de São Paulo”.

Oswald de Andrade tinha uma garçonnière na Praça da República, onde ele recebia artistas que vinham para tomar cachaça e petiscar pedacinhos de rapadura (pois o local não tinha cozinha). Entre viradas de copos e tabletes de açúcar na língua, grandes nomes como Menotti del Picchia, Monteiro Lobato, Guilherme de Almeida e, claro, Mário de Andrade, ajudaram a criar a expressão artística que rompia com o tradicionalismo da época.
“A culinária era um campo de ação e de expressão para as ideias modernistas”, Rudá K. de Andrade, neto de Oswald de Andrade e da escritora Pagu.

A feijoada macabra de Macunaíma
Os alimentos descritos por Oswald de Andrade ilustram a São Paulo de seu tempo, falam sobre a mesa das mazelas e os banquetes dos aristocratas. Isso também é observado na obra de Mário de Andrade. “Macunaíma”, por exemplo, tem mais de 100 citações relacionadas à culinária.
Talvez a mais importante seja a macarronada. É quando o vilão comedor de gente Venceslau Pietro Pietra cai no caldeirão, experimenta a massa que o próprio corpo temperou, lamenta que falta queijo e morre. Tal cena foi eternizada no cinema, em 1969, com a macarronada dando lugar a uma feijoada macabra, cheia de pedaços humanos numa clara homenagem ao movimento antropofágico modernista.

O movimento antropofágico, corrente que marcou a primeira geração modernista, nasceu durante um jantar, em 1927. A trupe de artistas se deliciava com uma apetitosa porção de rãs. Ao se deparar com a iguaria no prato, que preparada e servida lembrava um pequeno corpo humano, Tarsila do Amaral, então esposa de Oswald de Andrade, ponderou que naquele momento eles estavam sendo quase antropófagos.
“E, assim, cozinhou-se a metáfora antropofágica que, posteriormente, alimentou inúmeras reflexões culturais e obras da produção artística brasileira”, Rudá K. de Andrade.
A inspiração veio do ritual tupinambá, pelo qual o comensal acreditava que devorar o inimigo gerava a absorção de suas qualidades. Ou seja, a proposta do movimento falava sobre uma fome simbólica, que engoliria outras culturas, transfigurando o que vinha de fora, absorvendo elementos típicos brasileiros, para reforçar uma cultura com caráter nacional.
Depois do jantar com rãs, inspirada por este ideal, Tarsila pintou o quadro que é o símbolo maior do movimento. “Abaporu” significa “o homem que come” e foi dado de presente para Oswald de Andrade.

Cardápio de histórias
Entre 1915 e 1940, Mário de Andrade iniciou uma curiosa coleção de cardápios. São 22 menus e um marcador de lugar à mesa que estão preservados no Fundo Mário de Andrade, parte do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.
Esses documentos testemunham momentos de sua vida pessoal, profissional, cultural e política. Ao decodificar estas refeições é possível evidenciar a origem das normas e gostos alimentares da elite nacional daquele tempo”, diz Paula de Oliveira Feliciano, professora de gastronomia no Centro Universitário Senac e autora da tese de mestrado “Modernistas à mesa: a coleção de cardápios de Mário de Andrade”.
Os cardápios são um reflexo da paixão do escritor pelo estudo da cultura popular. E, mais importante, formam um registro histórico. “São testemunho da vida cultural, social e política de uma época”, reflete Paula.
Oswald de Andrade não guardava cardápios, entretanto se deliciou com emblemáticos banquetes ao longo da vida. Seu neto, o historiador Rudá K. de Andrade só foi entender a importância das rãs, prato que sempre figurou no cardápio de sua família, quando mergulhou na pesquisa sobre as aventuras gastronômicas do avô.
“Além da contextualização social que o livro traz, articulando relações históricas, também quis resgatar a minha família, para assim descobrir que os meus gostos e preferências vieram de Oswald, que passaram para o meu pai, e chegaram até mim”, explica.
Os favoritos do meu avô
Em “A arte de devorar o mundo”, o livro que acaba de publicar, descobrimos que vatapá, feijoada e quindim eram as comidas preferidas do escritor modernista. Rudá traz receitas que fazem parte da sua memória afetiva.
Estão lá o passo a passo para preparar iguarias como a Rã Abaporu, o Avant Vatapá e o Pão Oswald.

“Eu não herdei um caderninho de receitas do meu avô, só levei para o livro comidas que fizeram parte da história dele, mas preparadas do meu jeito”.
Cem anos depois, com certeza Oswald e Mário de Andrade se sentiriam orgulhosos de serem lidos, debatidos, mastigados e degustados. Afinal, há melhor forma de preservar a nossa história do que comendo? “A culinária oferece uma relação com nossos antepassados. E isso é muito bonito”, finaliza o neto de Oswald.
Foto de capa: Detalhe do painel “Momento Antropofágico com Oswald de Andrade”, na Estação Republica do metrô, em São Paulo (Alberto Rocha/Folhapress)
Fonte: UOL