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Violência e criminalidade: Perda do “fio da meada” — Parte 2

Construímos a sociedade do ter. Abandonamos a do ser

Coluna Café Coado, com José Nivaldo Campos Vieira

Continuemos a caminhada proposta em nosso primeiro artigo, fazendo analogia entre a expressão perda do “fio da meada” e a grave situação envolvendo a questão da violência e da criminalidade que, com maior ou menor grau de agressão, atinge e preocupa a sociedade brasileira como um todo.
Em nosso artigo anterior afirmamos que, à semelhança de um tear, quando o tecido social (a malha social), não é constituído pelo conjunto dos muitos (milhares, milhões) de carretéis que fornecem os fios para compô-lo, ou seja, quando alguns fios se desprendem a máquina e são esquecidos, ignorados, o tecido social produzido sai com defeito.
Na condição de operários responsáveis pela fabricação do tecido social, movidos pelos diversos aspectos já mencionados (sociais, culturais, econômicos, políticos, religiosos), somos nós que o produzimos com defeito, e somente nós, construtores sociais, temos como corrigi-lo, melhorando sua qualidade.

Nem sempre foi ruim assim. A sociedade brasileira, a sociedade capixaba, já produziu tecido social de melhor qualidade, portanto, sabemos fazê-lo assim. No Brasil, começamos a perder o “fio da meada” a partir da década de 50, no pós-guerra. De forma paradoxal, começamos a vivenciar, nesta época, um ciclo de intenso desenvolvimento, de crescimento econômico, mas esquecemos do social.
Construção de estradas, avanço do progresso e do desenvolvimento para o interior do País, poderoso incremento da industrialização, fortíssima, intensa migração do campo para a cidade (um verdadeiro êxodo rural). Urbanização acelerada. Progresso econômico visível. Período florescente. Máquina de tear a todo vapor.
O crescimento econômico, o progresso, a produção de bens de consumo em larga escala (automóveis cada vez mais modernos e velozes, roupas de grife, sapatos modernos, “tênis de marca”, eletroeletrônicos em abundancia e descartáveis, etc., etc.), evidencia, hoje, aonde chegamos nesse curtíssimo espaço de tempo percorrido. Pouco mais de sete décadas.

Com teares modernos e velozes, produzimos, em nome do progresso, bens de consumo em abundância, de modo intenso, e muito rápido. Mas, lamentavelmente, negligenciamos na construção do tecido, da malha social. Alguns fios começaram a se desprender da máquina de tear e, nós, sociedade brasileira, sociedade capixaba, no seu conjunto, entorpecidos pelo progresso econômico, não nos demos conta do que estava acontecendo. Esquecemo-nos do social. Construímos a sociedade do ter. Abandonamos a do ser.
Hoje atônitos, perdidos, acuados, bradamos aos quatro ventos, reclamando da qualidade do tecido defeituoso, violento e criminoso que, paradoxalmente, está sendo produzido por nós mesmos… e só nós temos condições de corrigi-lo. Vamos conectar as linhas perdidas, que se soltaram do tear, e com isso resolver o problema. Inexiste outra solução.

Merece ser enfatizado aqui, em relação à responsabilidade pelo que estamos vivenciando no contexto da violência e criminalidade, fruto do tecido social defeituoso. Quando menciono a sociedade, menciono-a de forma coletiva, em seu conjunto. Não me refiro apenas em relação a mim, a você, aos outros, aos governantes (por nós escolhidos, eleitos à nossa “imagem e semelhança”), à polícia, à família, ao Estado, à igreja, ou em relação a qualquer outro segmento individualizado. Refiro-me à responsabilidade da sociedade em seu conjunto. Nós; todos nós, juntos.
Tomemos como exemplo um fato real que vivenciei há algum tempo. Depois de ter participado de importante reunião, com a presença de expressiva representação política e social (autoridades de poderes constituídos, lideres sociais, representantes do setor produtivo, das policias, etc.), onde foi discutida exatamente a questão da violência e da criminalidade no espaço de um Município, seguia para meu local de trabalho, quando me deparei com uma cena surrealista.

Uma criança, um garoto com apenas 13 anos de idade, havia sido contida, por ação de populares, logo após ter “assaltado” uma pessoa que estava em um ponto de ônibus. Portando uma arma (garrucha calibre 32), e usando uma bicicleta como meio de transporte, abordou sua vítima em um ponto de ônibus, rendeu-a, subtraindo dela a bolsa.
Após ter praticado o ato “delitivo” (no caso em tela, pela legislação brasileira, ato “infracional”), guardou a arma na cintura, e, tranquilamente, à luz do dia, seguiu seu caminho, tendo logo em seguida, com a mesma tranquilidade, sem esboçar qualquer reação, sido “presa” por populares.
A cena era dantesca. Como que alheia a tudo e a todos, rendida, abatida, sentada na calçada, imobilizada de forma improvisada, rodeada por adultos, alguns agressivos, outros atônitos, estava ali, impassível, um misto de criança e “bandido”. Alguém digno de pena, e, ao mesmo tempo, um “algoz mirim” que, com seu ato condenável poderia ter acionado o gatilho e assassinado uma mãe de família.

Charge sobre menor infrator

Aproximei-me da cena. Bem vestido, muito provavelmente sua roupa, seu calçado (tênis “de marca”), e a bicicleta que usava (de boa qualidade), eram produtos de roubos ou furtos; lá estava aquele pequeno ser humano que, vivendo à margem da lei, constituía um verdadeiro “fio desprendido da meada”. Evidência clara da má-formação do tecido social.
Aguardavam a chegada da viatura policial, já acionada. Enquanto não chegava a polícia, conversei com ele. Perguntei sua idade, onde morava, e se tinha pais. Disse que tinha mãe. Perguntei se ele queria que eu fizesse contato com ela. Respondeu que sim, me passando o número do telefone celular dela (modernidade da era da comunicação em massa que se socializou).
Liguei. Atendeu uma voz feminina, 35 anos, que disse trabalhar em uma funerária (lavando e preparando corpos para velório). Falei que seu filho tinha sido preso por ter praticado um “assalto” e que seria levado para a Delegacia.
Como a do filho, a reação da mãe também foi fria, inimaginável para qualquer mãe. Não chorou, não gritou, não se desesperou. Apenas perguntou para qual delegacia ele seria levado. Em algum momento, de forma a esperar receber uma resposta negativa, perguntou se poderia falar com ele pelo telefone. Afirmei que sim.

Pedi que o desamarrasse, e entreguei-lhe o aparelho celular. Diálogo de não mais de 10 segundos. Depois da fala com a mãe, ele ficou mudo. Passou a não corresponder a qualquer conversa. Orientação da mãe, quem sabe, cumplice…
Passados alguns minutos, chegou a guarnição policial. Dois policiais jovens, que conduziram todos/tudo (o infrator, a vítima, a arma, a bicicleta, o produto do roubo), para a Delegacia Policial. Mais um caso envolvendo criança/adolescente em conflito com a lei. Mais uma, das dezenas atendidas por aqueles policiais na faina do seu dia a dia. Agressor, vítima, policiais, plateia, cada um, ao seu modo, cumprindo seu triste papel, sem entender bem a que serve. Encerrada a cena, “dantesca”. Drama da vida real. Triste realidade.
“Preso”, ou “apreendido”, aqui usando o novo neologismo empregado para evidenciar a privação de liberdade em relação à criança/adolescente em conflito com a lei, o minúsculo fiapo de “fio da meada” perdido, desprendido do gigantesco tear social, foi parar atrás das grades. Não por muito tempo.

Criança de 13 anos, a mais velha de outros cinco irmãos. Jovem mãe, de 35 anos que gerou seis filhos, todos “gerados” por homens (não pais, mas meros reprodutores) distintos e ausentes. Mãe e filhos moradores de periferia. Condições de moradia precaríssima. Ambiente social, idem. Relegados à exclusão social. “Fios da meada” desprendidos do tear acelerado que, de forma teimosa, continua insistindo em fabricar de forma defeituosa o tecido social.
Não vai ser, nunca, a partir de uma instituição policial, a partir de uma instituição destinada a recolher e internar crianças e adolescentes em conflito com a lei, que vamos resolver o problema da violência e da criminalidade. Não obstante o férreo empenho e dedicação destes.

Como encerrei texto anterior, eis, de forma simples e emblemática, a evidenciação de um pedacinho de “fio da meada” perdido. Ele existe, está aí. Tem nome, idade, endereço, um coração batendo. Tinha 13 anos de idade quando da ocorrência do fato. Fruto de uma família inexistente, nunca constituída. Fruto do descaso, da desatenção, do não é comigo. Relegado ao abandono social. Hoje, se ainda vivo, um adulto… ocupando vaga em algum presídio… ou se solto, assaltando…
Eis o princípio gerador da violência, da criminalidade. Encontramos o “fio da meada perdido”. Que tal conectá-lo no gigante tear que tece a malha social? Vamos, quem sabe, proporcionar dignidade, valores, respeito, responsabilidade, deveres, direitos, de forma a impedir/dificultar o surgimento de novos “fios da meada” desprendidos do tecido social.

Em relação aos “fios da meada” hoje desprendidos, que tal ensinar-lhes a serem crianças. Que tal reconstituir suas famílias. Que tal, ao invés de polícia, proporcionarmos escola, professor, educação. Que tal saneamento básico, espaços para cultura e lazer. Que tal inserção social.
Que tal sermos realistas, desvestirmos de nossa hipocrisia, e discutirmos de forma séria a questão da responsabilidade penal para quem, independentemente da idade, pratica atos de violência e criminalidade. Que tal sermos também realistas, sem hipocrisias, e discutirmos a questão da gravidez responsável.
Se não fizermos isso agora, daqui a cinco anos, centenas de crianças hoje, como a envolvida no fato relatado, já adultas, estarão assaltando, com mais agressividade. E, com certeza, não pensarão duas vezes em acionar o gatilho.
Continuemos nossa reflexão no próximo capítulo.

José Nivaldo Campos Vieira
Advogado, formado em Filosofia,
coronel da Reserva da PMES e
empresário da área de segurança privada
nivaldo@seiinteligencia.com.br

Luzimara Fernandes

Jornalista MTB 2358-ES

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