Violência e criminalidade: Perda do “fio da meada” — Parte 10

Há aspectos multifatoriais, mas, no foco deles, no ponto central deles estão os “fios da meada” desprendidos do grande “tear social”
Coluna — Café Coado, com José Nivaldo Campos Vieira

Chegamos à década de 90, a última de um conturbado Século XX. Com ela, os ares da plenitude democrática no Brasil. O Governo de exceção implantado em 1964 chegou ao fim em 1985, com a consolidação da conhecida “abertura democrática” iniciada no final dos anos 70. O novo texto Constitucional, produzido por parlamentares integrantes de uma Assembleia Nacional Constituinte eleita em 1986, é promulgada em 1988.
Em 1989, com o advento das eleições diretas para presidente da república, o povo reconquistou o direito de escolher, pelo sufrágio universal de votos, todos os cargos do Executivo e do Legislativo, de vereador a presidente da república.

Merece destaque a eleição presidencial de 1989. Ela foi disputada por 22 candidatos, que representavam 22 partidos políticos (estamos falando de 1989, e já naquele ano existiam 22 partidos políticos). Pois bem, como um “partido político” é a representação de uma “parte”, ou seja, de uma possibilidade de pensamento a respeito de como governar, o eleitor teve, naquele momento, que escolher uma, dentre 22 opções. Não começamos bem, nesse contexto…

Mas, voltemos ao nosso foco central. A questão da violência e da criminalidade, no Brasil, e de forma particular no Estado do Espírito Santo. Se a situação já estava muito complicada nos anos 80, ela não melhorou. Ao contrário, continuou piorando, e muito, nos anos seguintes.
Segundo dados do Ipea — “Atlas da Violência”, disponível no site: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/dados-series/20; no Brasil, em 1980, foram registrados uma média de 11,69 homicídios dolosos (classificados como “morte violenta intencional”) por grupos de 100 mil habitantes. A situação em nosso Estado era bem pior. Registrava 15,7 homicídios dolosos por grupos de 100 mil habitantes, ou seja, 30% acima da média nacional.

E o que indicavam os números, e, ainda, qual o número “aceitável”? A título de exemplo, como desejável, indicando um baixo índice de conflito social, temos a taxa homicídio/100 mil habitantes registrada no Japão: Abaixo de 1,0 (um). A média mundial gira em torno de 6,0. Assim, com uma taxa média de 11,69 homicídios dolosos/100 mil habitantes, o Brasil já figura, lá em 1980, no rol dos países mais violentos do mundo.
E o que aconteceu nos anos seguintes foi ainda mais desastroso. A onda de ganhos no campo das liberdades democráticas — muito importantes — lamentavelmente não trouxe reflexo favorável nesse segmento. Se a situação era complicada no início da década de 80, ela piorou muito nos anos que se seguiram.

No início dos anos 90, a taxa média de homicídio/100 mil habitantes no Brasil (segundo a mesma fonte, o Ipea) chegou à astronômica cifra de 22,22 homicídios dolosos/100 mil habitantes. Em nosso Estado, mantendo a triste posição de destaque, o indicativo, que já era muito ruim no início da década de 80, piorou muito no início dos anos 90. Salto de 15,07 para 34,63 homicídios dolosos/100 mil habitantes, ou seja, número 55% acima da média nacional. E, mais grave ainda, esse número continuou piorando, particularmente em nosso Estado.

Chegamos nos anos 2000 com uma taxa média de 27,35 homicídios dolosos/100 mil habitantes no Brasil. Nessa mesmo época, no Espírito Santo, a taxa saltou para 48,14 homicídios dolosos/100 mil habitantes, ou seja, 76% acima da média nacional, nos colocando na desonrosa posição de um dos Estados mais violentos do Brasil. Chegamos a ter índice acima de 50,00 homicídios dolosos/100 mil habitantes.
Esses dramáticos números da violência na sua forma mais torpe, a relacionada à consumação de crimes intencionais (dolosos) contra a vida, se mantiveram com viés de alta nos anos seguintes, até por volta de 2010. A partir de então vem evidenciando redução, embora pequena, e ainda com marcos de taxas elevadíssimas.

Em 2019, o Ipea evidenciou registro de uma taxa média nacional de 21,64 homicídios dolosos/100 mil habitantes, com o Espírito Santo, embora ainda acima da média (25,95 homicídios dolosos/100 mil habitantes), mas não tão distante dela.
Retomemos a nossa linha do tempo. Estamos na década de 90. Nela, a partir da posse do novo Presidente da República, passamos a viver em um País na plenitude de sua normalidade institucional, quebrada no meado da década de 60, e restabelecida no final da década de 80.

Assim, como compreender, então, o motivo de estarmos, exatamente nessa época áurea do restabelecimento do estado democrático e de direito, vivenciando fortíssimo agravamento dos problemas relacionados à paz social. Estamos falando, conforme evidenciado acima, de defesa social, de segurança pública, do aumento da violência e da criminalidade. Crimes violentos contra a vida, com números comparáveis a países em guerra.
Há aspectos multifatoriais, mas, no foco deles, no ponto central deles estão os “fios da meada” desprendidos do grande “tear social”. Problemas acumulados ao longo de décadas, seguramente não seriam (e não foram) resolvidos, como um “passe de mágica”, a partir do restabelecimento da normalidade político-institucional.

Novos dirigentes assumem os governos dos Estados, em sua maioria, pouco afeitos ao trato das questões que envolviam as agências operadoras da segurança pública. Esta situação é agravada, em função da “desconfiança” dos dirigentes em relação às organizações policiais, que agora lhes eram subordinadas, de sua responsabilidade. Curiosamente, deixavam de ser “estilingue” (papéis que ocupavam antes de assumirem postos governamentais) para serem “vidraças”. Merece ser destacado que a recíproca era verdadeira. Havia muita “desconfiança” (distanciamento) das organizações policiais em relação aos novos dirigentes.


Esse momento histórico foi marcante. Era visível a existência de um profundo “fosso” existentes entre os novos gestores públicos, e agora, com maior presença na gestão pública, membros das academias (no caso do nosso Estado, com maior ênfase, as pessoas da área social vinculada à Ufes) e os profissionais de segurança. Era como se fossem habitantes de “dois mundos distintos”, cada um, a partir do seu lado do “fosso” com as suas “verdades absolutas”.

Exemplo desse momento. Por convênio com o Ministério da Justiça, profissionais de segurança pública estadual passariam a frequentar curso de aperfeiçoamento na Ufes. O corpo docente seria formado por professores da Universidade e das instituições policiais. Naquele momento, algumas questões “prosaicas” foram levantadas: os policiais transitariam na área da Universidade armados? Os policiais militares iriam fardados? Embora, até hoje, ainda persistam muitas “desconfianças”, ocorreram avanços significativos, com ganhos para todos.

Paralelamente aos aspectos acima, os problemas que há décadas vinham provocando aumento da violência e da criminalidade (abandono social, que produziu inúmeros “fios da meada” desconectados do grande “tear social”; existência de “grupos de extermínio” os quais, a margem do poder público, como um “estado paralelo”, criminoso, atuavam para “livrar” a sociedade da ação daqueles que praticavam ilícito; e, para agravar, o surgimento em larga escala do narcotráfico) persistiram; bem como, de forma muito rápida, ocorreu adequação, agora com mais força, da política do MAIS do MESMO.

Ou seja, como já mencionamos em artigos anteriores, tentou-se resolver o problema SOCIAL, agora agravado, com a intensificação de ações dos operadores do direito CRIMINAL: MAIS polícia, MAIS justiça, MAIS Presídio.
A consequência (relação de causa x efeito), decorrente da aplicação de solução inadequada, ineficaz, não poderia ser outra. Além de não dar conta do problema (pois a violência continuou aumentando, e não parou mais), provocou outra consequência: aumento da população carcerária em número muito preocupante.
Como já mencionamos em artigo anterior, o Brasil passou a ocupar a desonrosa posição de ter a terceira maior população prisional do mundo. Esta incômoda posição, a princípio, poderia não ser “exagerado” (mas é), se levarmos em consideração que nosso País possui a sexta maior população mundial.

Mas o problema não está (tão somente) nesse aspecto. Há outro, mais complicado. Países, historicamente com elevada população carcerária, como os EUA, China, Rússia; vêm, já há alguns anos, reduzindo o número de presos. Em situação oposta, o Brasil está na “contramão” dessa realidade. Por exemplo: Até alguns anos atrás, a Rússia ocupava a terceira posição, seguida do Brasil (que ocupava a quarta). Hoje esta posição se inverteu. A Rússia, vem, há mais de duas décadas diminuindo a sua população prisional. Em 2020, a população carcerária da Rússia já era menor do que a do Brasil em 2014.

Na linha de redução do número de pessoas presas, podemos observar, por exemplo o que vem acontecendo em Países que possuem altas populações carcerária, como Índia, Tailândia, Turquia. Esses Países mantêm números altos, mas com certa estabilidade. Apresentaram crescimento em torno de 50% nos últimos 10 anos.
O Brasil, como já dissemos, na “contramão”, veio mais que DOBRANDO sua população carcerária a cada 10 anos. Motivo? Resultado da aplicação da (ineficaz) política do MAIS do MESMO, que lida com o problema a partir da vertente EFEITO, sem lidar com a CAUSA.
Além de não produzir resultado diferente em relação à temática da violência e da criminalidade, a situação ainda é mais dramática: A solução inadequada retroalimenta, e potencializada as ações da violência.

Voltemos, de novo, à nossa linha do tempo. Vamos nos posicionar no referencial inicial (década de 60, abordada na Parte 4), onde evidenciamos que foi a partir dele que começaram a surgir, em números preocupantes, os milhares de “fios das meadas” desprendidos do enorme “tear” social. Nessa época, o crescimento da população carcerária brasileira era estável.
Como pode ser verificado no anuário estatístico do Brasil (disponível no site do IBGE: https://biblioteca.ibge.gov.br/), em 1954 existiam 15.000 pessoas presas. Passados 20 anos, em 1974, a população carcerária brasileira era de 35.000 presos. Ou seja, média de crescimento de 65% por década. Vamos ficar com esses números, e observar que, a partir da década de 70, a taxa de crescimento acelerou, fortemente.

No período, a população carcerária passou a aumentar, em progressão geométrica média de 130% a cada década. Em 1990 existiam 90 mil presos; em 2000, mais de 230 mil; ou seja, aumento de 150% em uma década. Em 2010 a população carcerária já somava mais de 500 mil presos, ou seja, aumento de quase 120% em uma década.
Há, mas pode-se dizer, e o crescimento da população brasileira? Bem, em 1970, éramos 93 milhões; e, em 2010, 200 milhões. A população, nesse período de 30 anos aumentou em 115%. O número de presos, 1300%…. Uma loucura…. Não é, nem um pouco razoável. Não.

Onde estávamos? Não era visível que a política do MAIS do MESMO para lidar com a questão da violência e da criminalidade não estava dando certo?
Continuaremos no próximo artigo, o 11º, o penúltimo da sequência que nos compromissamos escrever. Nele, vamos caminhar pelos anos 2000. Início do século XXI e do terceiro milênio.
Surge uma luz no fim do túnel. Surge uma possibilidade de sair da política do MAIS do MESMO para lidar com a questão da violência e da criminalidade.
Mas sim, não tenhamos dúvida, há um longo caminho a ser percorrido…

Advogado, formado em Filosofia,
coronel da Reserva da PMES e
empresário da área de segurança privada
nivaldo@seiinteligencia.com.br