Comportamento & Equilíbrio

Como cresce uma Criança? — Parte XIV

É muito grave uma sociedade que decide retirar da Criança e do Adolescente o Direito à Escola, e sua competência e sua convivência. A escola é o mundo familiar inicial aumentado, é a primeira etapa da inserção à sociedade

Para além do crescimento postural, associado ao desenvolvimento motor, acompanhado pelo desenvolvimento da linguagem, a Criança tem nos afetos e na cognição seu motor para chegar à idade adulta e poder usufruir com bastante autonomia a sua vida.

Pretendo lançar luz à importância do desdobramento da vida intrafamiliar da Criança. Quando ela entra para a escola, o mundo afetivo se multiplica em dois, com as devidas proporções. A escola, desde a pré-escola, introduz desafios cognitivos e aprendizagens diversas. Assim, os primeiros esboços de códigos de convivência social muito simples são estabelecidos, regras devem ser respeitadas, aumentando o acervo do restrito “pode” e “não pode” que estava inserido dentro da família.

Logo surge o aprendizado da língua extensa, a falada e a escrita, e as relações afetivas se consolidam com afetos e desafetos. A Criança vivencia não ser gostada, nem amada por todos, aparecem as escalas de preferências afetivas, e ela sente que precisa aprender a administrar essa nova tarefa. Os tropeços são muitos, mas necessários para a vida de adulto.

A escola é este campo de experiências sociais insubstituível. A lei que permitiu o Homeschooling, a escola em casa, usurpou da Criança este campo de desenvolvimento. E aqui, uma crítica mais forte: a escola é o segundo local em que a Criança pede socorro quando está sendo espancada ou abusada sexualmente. Assim, ela perdeu essa possibilidade e ficou ainda mais vulnerável, entregue, completamente, a seus agressores familiares. Este alerta foi dado por ocasião do Projeto de Lei que foi votado, mas não foi escutado pelo Ministério que tinha conhecimento dessa importância para a proteção da Criança.

A escola, desde a pré-escola, introduz desafios cognitivos e aprendizagens diversas. Assim, os primeiros esboços de códigos de convivência social muito simples são estabelecidos (Foto: Shutterstock)

A cognição ganha um terreno fértil. Novos conhecimentos são lançados e ampliam a capacidade de raciocínio. Mesmo que a competição seja acirrada, ela não é maléfica, salvo certos exageros. Faz parte do crescimento o ganhar e perder em competições limpas, onde se seguem regras claras, mesmo que a sensação seja, muitas vezes, de resultado injusto. À medida que a escolaridade avança, a proposta de conhecimentos é ampliada.

É um erro pensar que agradar Crianças e adolescentes diminuindo a diversidade de disciplinas, vai fazer com que “estudem mais” e, pior, que fiquem “felizes”. O comprometimento da Educação pela escolaridade em toda a sua linha, é com a transmissão de conhecimento através da cognição. É preciso saber que as disciplinas que, aparentemente, não vão ser usadas depois, têm a função de provocar os diversos raciocínios. O raciocínio usado nas Ciências Exatas, nas Ciências Humanas, nas Ciências Biológicas, nas Ciências Tecnológicas, e nas Pesquisas de todas as Ciências, é alimentado pela escola e pela escolaridade.

A universidade é o celeiro da cognição plena, da possibilidade de raciocinar pela abstração, considerando muitas variáveis ao mesmo tempo. Entrar em contato com pensadores, filósofos, matemáticos ou humanistas, permite que se tenha a noção de como formular uma tese, ou mesmo, uma opinião. Por isso, sabemos que o desenvolvimento cognitivo só se completa por volta dos 25 anos.
Para que a capacidade de pensar consiga abranger um espaço que faça daquele jovem alguém mais competente para os problemas da vida, de qualquer ordem, faz-se necessário o estímulo nas diversas áreas do raciocínio.

A universidade é o celeiro da cognição plena, da possibilidade de raciocinar pela abstração, considerando muitas variáveis ao mesmo tempo (Foto: Shutterstock)

É com pesar que assistimos o reducionismo ganhar espaço na Educação. A proposta de tornar obrigatório o ensino de apenas três disciplinas, português, matemática e inglês, deixando à livre escolha do adolescente de outras disciplinas que passam a ser “eletivas”, quando esse adolescente ainda não alcançou seu desenvolvimento cognitivo, e nem o emocional, para realizar essa escolha, é incompreensível. É incoerente, para técnicos em Educação, que têm, ou deveriam ter, o conhecimento científico desse desenvolvimento ainda incompleto, defendendo essa proposta como sendo a “solução” da evasão escolar ou do baixo resultado de escores de avaliações de aprendizagem.

Não é pretendendo tirar o tédio de estudar uma disciplina que o tédio de cumprir obrigações na adolescência irá sumir. Vamos apenas reduzir a possibilidade de raciocinar desses adolescentes. E, consequentemente, diminuir a capacidade de avaliar uma dada macrossituação, de macroconsequências, que serão pensadas em raciocínio concreto, bem limitado. Se o pensamento é empobrecido, a tendência é cair no preconceito que se baseia em tese de única variável, dispensando, inclusive, a comprovação científica.

Em lugar de capacitar melhor e mais os professores, de equipar mais as bibliotecas das escolas, de tornar mais vivo o curriculum das séries, optamos por abolir a repetição por resultado abaixo da média, optamos por liberar a escola em casa, (lembrando que a Pedagogia é uma Ciência, e achar que pai/mãe podem ser professores, é desqualificar todos os professores), optamos por diminuir o número de disciplinas para agradar os adolescentes, ou seja, optamos por rebaixar a importância da escola.

É muito grave uma sociedade que decide retirar da Criança e do Adolescente o Direito à Escola, e sua competência e sua convivência. A escola é o mundo familiar inicial aumentado, é a primeira etapa da inserção à sociedade. É na escola que a Criança e o Adolescente aprendem não só as disciplinas que alimentam seu desenvolvimento cognitivo, mas também as regras de cidadania, os Direitos e Deveres que têm. O desenvolvimento afetivo tem na escola um grande laboratório vivo e cotidiano das relações interpessoais.

Não há como negar que esse foi um grande favorecimento de cobertura para pais/mães agressores, incluindo, principalmente, os abusadores sexuais.
Parece que nós não pensamos com uma cognição plena. Ou, não queremos pensar.

Ana Maria Iencarelli

Ana Maria Iencarelli

Psicanalista Clínica, especializada no atendimento a Crianças e Adolescentes. Presidente da ONG Vozes de Anjos.

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