Versão – Parte I


Aqui estou de novo, diante do espelho. Penso se devo ou não questionar a minha sanidade. Acho que ele escuta os meus pensamentos e vem até mim, através da imagem que me reflete. Hoje é o dia! Não me faça mudar de ideia. Vou pedir o divórcio a ela. Preciso ser um homem livre, não só do casamento, mas principalmente livre de você, pois me domina de tal forma que deixo de saber quem realmente sou. Aparece logo, para ordenar o seu egocentrismo.

— Sua fragilidade me assusta! Não peça o divórcio, mate-a de uma vez! Assim, não perderá o seu tempo futuro com conflitos mentais sobre a sua covardia. — respondeu a outra versão, com um tom drástico e desprezível sobre a minha pessoa.
— Caso eu te ouça, e cometa tal ato criminoso, irei destruir a nossa vida! Não há motivos para tanto. Só vou pedir o divórcio. — Com altivez, fixei os meus olhos nos dele.

— Se a matar, estará livre dela para sempre, e provável que de mim também, pois acredito que não há espelhos nas prisões. Sua covardia me assombra. Dizer que não tem motivos? Como pode não ter motivos? É mera loucura! Sendo que a flagrou na cama com o seu amigo! Persisto em ir mais longe e te dizer que precisa matar os dois. Assim, fará valer a sua posição viril para sempre.
— Ela não sabe do flagrante. Posso recomeçar, e não agir por impulso. Lembre-se que nós ficaremos presos para sempre! Preciso de uma chance, sei que eu posso ser um novo homem, sem marcas.

— Quanta resiliência! São inúteis tais pensamentos. O seu horário está acabando. Daqui a pouco, ela entra por aquela porta. Faça o seguinte: espera por ela com duas taças nas mãos e um bom vinho. Abrace-a e a jogue contra a parede, com movimentos sensuais. Apenas finja que está com tesão, para criar a cena propícia. Quando ela estiver em suas mãos, poderá definir se a enforca ou a asfixia com uma almofada. — Assim que ele finalizou o planejamento, o seu semblante estava assustador. Confesso que sempre o temi, pois, não consigo controlar a influência que ele exerce sobre mim.

Conto: Versão
Palavras: 731
Livro: O Medo
Arte: Thaís Alves

Sua proposta me fez refletir em como agir realmente. Meu distúrbio mental fragilizou a percepção entre o bem e o mal. Diante do espelho, os seus olhos estavam fixos nos meus, porém, o seu ódio era maior do que eu. Em uma coisa ele está certo: se eu não a matar, eles vão ficar juntos. Seria deprimente. Então, o que é pior ou melhor? Matá-la e ficar preso com a consciência lavada, no entanto, com uma culpa imensurável, ou talvez divorciar e ter uma vida de liberdade pela frente, podendo conhecer outro alguém que saiba realmente me amar?

— Pare de se enganar! Faça de uma vez o que falo. Acabe com isso. — Ele respondeu impaciente, nada compreensivo com o meu lado sensato.
— Cara, eu não sou um psicopata como você. Acredito que possuo alguma dignidade dentro de mim.
— O que sobra em você é covardia, não dignidade.
— Chega de conversa. Preciso ir, afinal, ela deve estar chegando. Vou pensar em tudo o que me disse, principalmente na covardia.
— Você sempre faz o que te digo.
— Não, nem sempre! — falei ao me afastar do espelho e lavar o rosto na pia.

Nem sempre faço o que ele manda, mas confesso que é tentador agir assim. Vou para a cozinha. Resolvi cozinhar uma carne, para refletir melhor, e entre temperos e cortes, permaneci pensativo. Abri uma garrafa de vinho e preparei duas taças. Ansioso, pude sentir o seu perfume próximo a mim. A outra versão conseguiu confundir o que já estava decidido. De certo, a decisão seria definitiva: morte ou separação? Com a faca nas mãos, cogito as possibilidades. Acho que ela acabou de chegar! Sinto uma leve taquicardia.

— Oi, amor. Boa noite! — Ela colocou a bolsa no armário.
Vou permanecer aqui, na cozinha, à espreita. Ah, ela já se aproxima, com aquele rosto angelical e o sorriso mais encantador do mundo.
— Nossa, amor, o cheiro está incrível. Teremos assado para o jantar? — Ela me questionou, assim que entrou pela porta e me viu com a faca na mão.
— Sim, amor. Teremos um assado para o jantar. Venha aqui. Me dá um abraço!
Ao se aproximar, eu a abracei suavemente, sem conseguir conter os meus desejos, e a envolvi em um beijo, o último beijo.