Um indígena esquecido na prisão

Com comorbidades, cacique Serere segue preso em Papuda, apesar de pedido de soltura feito pela Procuradoria-Geral da República
Por Cristiano Costa

Sinais visíveis de depressão, perda de peso de 20 quilos, visão turva e dores musculares constantes devido ao diabetes avançado. Esse é o estado de saúde de José Acácio Serere, cacique da tribo Xavante , preso na Papuda por ordem do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal (STF). O indígena de 42 anos acabou preso por supostamente liderar “atos antidemocráticos” em Brasília, protestando contra a eleição do presidente Lula. A prisão temporária, que deveria durar dez dias, chegou a seis meses nesta semana — e não há data para terminar. Isso porque, após o prazo estabelecido pela lei, Moraes agiu por conta própria e estendeu a prisão de Serere sem consultar o Ministério Público Federal ou outras autoridades.
Geovane Pessoa, um dos advogados que representam o cacique, refuta as acusações de que Serere cometeu crimes. Ele lembra que em março, Lindôra Araújo, subprocuradora-geral da República e responsável pelo pedido de prisão do indígena ao STF no final do ano passado, reiterou pedido de soltura dele a Moraes.

Como ‘dono’ do caso, a Procuradoria-Geral da República não vê mais motivos para Serere permanecer sob custódia”, disse Pessoa. “No entanto, apesar de todos os argumentos, a justiça atrasou o processo e ainda não temos uma decisão”.

Os pedidos de alteração do cardápio do Serere também não receberam a atenção da Justiça. O indígena precisa comer alimentos específicos para evitar o agravamento do diabetes. A defesa afirma que já apresentou pedidos de mudanças alimentares há algum tempo, mas não houve resposta. Nem mesmo a carta publicada por Serere, na qual pede desculpas pelas ofensas dirigidas a Moraes, tocou o ministro. No documento, o indígena afirma que “nunca defendeu a ruptura democrática”, mas sim criticou a vitória de Lula nas eleições de 2022. Ele também afirmou que não acredita na violência como método de ação política.

Entendo que o amor, o perdão e a reconciliação são os únicos caminhos possíveis para a vida em sociedade”, afirma Serere no texto.

Antes da carta, Serere divulgou um vídeo pedindo a seus apoiadores que não cometessem violência ou vandalismo em reação à sua prisão. Nas imagens gravadas diretamente da sede da Polícia Federal em Brasília, o delegado é visto falando em sua língua nativa, o aquém. “Não entre em conflito, briga ou confronto com as autoridades policiais”, aconselhou o indígena. Na época, a capital federal havia passado por ataques a prédios públicos e destruição de carros e lixeiras. Esses atos foram supostamente cometidos pelos principais apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. No entanto, nas redes sociais também circulam imagens de pessoas denunciando a presença de black blocs e indivíduos não filiados a movimentos de direita.

A vida na prisão Atualmente, o indígena divide uma cela apertada com outros dez detentos, divide o banheiro, não toma banho quente e às vezes dorme sentado para se alternar em colchões escassos. Inicialmente, não recebia visitas de familiares e amigos. Serere só conseguiu reencontrar a esposa, Sueli, 90 dias após a prisão, graças a Pessoa e Levi de Andrade (este último saiu do processo há 15 dias), que assumiram sua defesa. A família afastou a primeira advogada, Jéssica Tavares, acusando-a de não trabalhar devidamente e de ser filiada a um partido político de esquerda. A cada 15 dias, Sueli e seus filhos percorrem cerca de mil quilômetros de carro para conhecer Serere. A família mora em Campinápolis (MT), cidade onde o cacique trabalhava como pastor evangélico e missionário de um movimento religioso.

Sueli acompanha tudo desde o início e teme pela vida do marido na Papuda. Segundo ela, Serere sofreu uma crise repentina de saúde na cadeia, decorrente do estresse constante. A saúde do indígena piora a cada dia. Um laudo médico assinado pelos médicos Nicole Hasegawa e José Glória constatou que o cacique corre “risco de insuficiência renal, retinopatia, amputação de membros e coma hiper ou hipoglicêmico”.

O paciente encontra-se fora dos padrões de cuidado de sua saúde, o que pode acarretar complicações inerentes a uma alimentação inadequada, alterações em seu estado psicoemocional e o desenvolvimento de doenças antes inexistentes, que poderão ser questionadas futuramente em decorrência da falta de cuidados indispensáveis com sua raça e meio ambiente”, afirma o documento enviado ao tribunal meses atrás.

Prisioneiro esquecido Em dezembro de 2022 e maio deste ano, dois protestos pacíficos pela libertação de Serere foram organizados por indígenas de sua tribo, além de outras etnias. O primeiro protesto ocorreu em frente ao Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto o segundo ocorreu na Esplanada dos Ministérios. Na manifestação mais recente, o grupo liderado pelo ativista indígena Delfim Tsererówẽse se reuniu com o senador Luís Carlos Heinze (PP-RS) e pediu providências no caso de Serere. Outros parlamentares estão sendo procurados para conscientizar sobre a situação do cacique, mas poucos se engajaram ativamente em sua defesa, com exceção da deputada federal Sílvia Waiãpi (PL-AP), que já se pronunciou sobre o indígena e criticou sua prisão.

Levi de Andrade, ex-advogado de Serere, afirma que a Fundação Nacional do Índio (Funai) nada fez por Serere. “A Funai o esqueceu”, disse Andrade. Ele observou que nenhuma associação que se diz representante dos “povos indígenas” e nem o Ministério dos Povos Indígenas, chefiado por Sônia Guajajara, se solidarizou ou prestou assistência ao cacique. Ao assumir a liderança do ministério, Sônia prometeu cuidar de todos os indígenas e se proclamou porta-voz de seus companheiros indígenas.

Muitos povos indígenas vivem uma verdadeira crise humanitária em nosso País, e agora estou aqui para trabalharmos juntos para acabar com a normalização desse estado inconstitucional que se agravou nos últimos anos”, afirmou na ocasião.

Segundo Pessoa, há pouco o que fazer no momento, já que o STF está ignorando os pedidos da defesa. “Infelizmente, só nos resta esperar que Moraes tome uma decisão”, disse. Serere vive uma situação semelhante à de outros manifestantes presos em 8 de janeiro. Muitos deles ainda estão detidos em Papuda e Colmeia. A maioria obteve liberdade temporária, mas é obrigada a usar tornozeleiras eletrônicas e cumprir uma série de medidas restritivas. Se Serere conseguir sair vivo da prisão, provavelmente se tornará apenas mais um indivíduo na multidão que se tornou prisioneiro do medo no Brasil sem ter cometido nenhum crime previsto na Constituição.
Fonte: Revista Oeste