A Era do Gelo nos Pampas brasileiros
Por Letícia Naísa/Revista Pesquisa Fapesp
Em um dia normal de 2007, ao estacionar perto da praia Concheiros, no litoral gaúcho, o paleoceanógrafo Francisco Buchmann notou algo entre as conchas. O pesquisador tinha como missão coletar material fóssil na região. Sem se afastar do carro, tirou uma foto do que a qualquer pessoa poderia parecer uma pedra grande na praia. Não para ele, que reconheceu um fóssil. Ao levar para análise no laboratório, descobriu que era parte preservada de uma preguiça-gigante — mais especificamente de uma tíbia (um dos ossos da perna) de Lestodon.
Bichos como esse fizeram parte da chamada megafauna: animais gigantes que viveram durante o Pleistoceno, que foi caracterizado por uma sucessão de períodos glaciais (ou Eras do Gelo) e interglaciais, e se estendeu entre cerca de 2,5 milhões de anos e 11 mil anos atrás. Nesse tempo a maioria das grandes espécies foi extinta na América, restando apenas algumas na África e na Ásia. “O mar desgasta esses fósseis debaixo d’água e joga na praia; eu passo de carro e pego”, conta Buchmann, que visita o litoral do Rio Grande do Sul com frequência há 30 anos, quando fez graduação na Universidade Federal do Rio Grande (Furg). O pesquisador se manteve nessa área de estudos, onde os fósseis terrestres e marinhos são mais facilmente encontrados, ao tornar-se professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São Vicente, na Baixada Santista. “Ao longo do litoral gaúcho não tem rochas, então qualquer coisa em que você tropeçar pode apostar que é fóssil”.
É com esses fósseis que Buchmann e outros pesquisadores têm tentado desvendar como eram os Pampas, bioma predominante no Rio Grande do Sul, durante o Pleistoceno. Contam, para isso, com técnicas que avançaram nas últimas décadas. Em uma pesquisa recente, uma equipe liderada pelo geógrafo Renato Pereira Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), conseguiu reconstituir o ambiente e o clima da região analisando o material dentário de fósseis de duas espécies de camelídeos: Lama guanicoe, conhecida como guanaco, que ainda existe em regiões áridas da América do Sul, da Patagônia até o Peru, e Hemiauchenia paradoxa, que já foi extinta.
A técnica consiste em calcular a proporção entre duas formas distintas (isótopos) de um elemento — no caso, foram analisadas as formas estáveis leves e pesadas de carbono ou oxigênio — presentes em uma amostra de fóssil. O resultado desses cálculos é chamado de razão isotópica.
No total, Lopes e sua equipe analisaram cinco fragmentos dentários e fizeram algumas descobertas sobre a dieta dos herbívoros. Na região dos Pampas, a vegetação apresenta plantas com três tipos de fotossíntese classificadas como C3, C4 e CAM — esta última típica de plantas suculentas, como cactos e alguns arbustos que eles podem ter comido também.
Um mamífero herbívoro que se alimenta da vegetação acaba incorporando esse carbono no tecido orgânico”, explica Lopes. “Quando analisamos os dentes, é possível identificar, pelas razões isotópicas de carbono, se ele comia mais plantas C3, mais C4 ou uma mistura das duas”, completa.
Isso porque o processo C3 de fotossíntese leva à absorção de uma proporção maior de isótopos mais leves de carbono em relação ao C4. Até agora, a equipe não encontrou na região animais que se alimentavam exclusivamente de plantas C4, características de climas quentes. Entre os camelídeos, havia preferência pelo tipo C3, que incluem gramíneas e arbustos de climas mais frios.
Outro elemento que a equipe identificou nos fósseis foi o oxigênio. Apesar de ser um indicador mais difícil de interpretar, Lopes afirma que os exames foram bem-sucedidos em razão de características específicas dos camelídeos, que vivem em clima seco e ingerem pouca água, principalmente como parte da vegetação que comem.
Em ambiente desértico, as plantas estão sujeitas a muita evaporação”, explica o pesquisador. Como a água com isótopo mais leve evapora mais facilmente, o que resta para ser ingerido se caracteriza pelo isótopo mais pesado. “O oxigênio armazenado nos fósseis é adquirido principalmente por meio da alimentação, ou seja, da vegetação que os animais consumiram”, diz Lopes. Razões isotópicas mais altas, portanto, indicam clima seco.
Essas descobertas sobre a dieta dos herbívoros e as informações sobre carbono e oxigênio nos fósseis permitiram aos pesquisadores inferir como era o clima na região durante o Pleistoceno, além da vegetação. “Na época que esses camelídeos viveram, por volta de 26 mil anos atrás, o ambiente estava muito mais seco”, aponta Lopes. “Foi o período mais frio e mais seco de todo o último período glacial”, observa o pesquisador sobre o que é conhecido como Último Máximo Glacial.
Sob orientação de Buchmann, a bióloga Thayara Carrasco conduziu uma investigação semelhante à da equipe de Lopes, incluindo mais uma espécie, a vicunha (Vicugna vicugna), considerada o menor entre os camelídeos que ainda habitam a América do Sul. “A vantagem de estudar os camelídeos é que eles ainda existem em algumas regiões da América Latina onde o clima é frio”, diz a pesquisadora. As lhamas e alpacas são alguns deles. Os resultados de Carrasco sobre a dieta dos animais e o clima do Pleistoceno na região foram similares aos de Lopes.
Fósseis de camelídeos também já foram encontrados mais ao norte do Brasil. “Hoje o Ceará é quente, mas no Pleistoceno camelídeos andavam por lá”, diz Buchmann. “Os Pampas são um reflexo da Argentina e do Uruguai, têm só um pedacinho no Brasil”, explica. “A fauna pampeana é característica do Uruguai e da Argentina, onde o clima é mais frio, e a fauna brasiliana [característica do Brasil, de clima mais quente] migra conforme as mudanças do clima: se estamos em um período glacial, mais frio, a fauna do sul sobe para o norte; em períodos interglaciais, a fauna brasileira desce”.
Por conta desses movimentos migratórios impulsionados pelo clima durante milhares de anos, fósseis de preguiças-gigantes e outros animais da megafauna, como tatus e tigres-de-dentes-de-sabre, não são encontrados exclusivamente no Rio Grande do Sul. “Essa fauna viveu de norte a sul das Américas”, afirma o paleontólogo Mário Dantas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A equipe de Dantas está trabalhando em uma análise da dieta anual de preguiças-gigantes. Dividindo um fóssil dentário em partes que representariam um ano da vida do animal, é possível realizar análises de isótopos mais específicas do que de uma amostra mais geral do esmalte dentário, como foi feito em outras pesquisas. Assim, os pesquisadores esperam descobrir mais detalhes sobre as variações climáticas ao longo de um ano do Pleistoceno.
Pesquisas de análises de isótopos em fósseis como as de Dantas, Lopes, Carrasco e Buchmann buscam desvendar as razões que levaram algumas espécies à extinção.
Trabalhamos com peças de um quebra-cabeças e cada resultado é uma pecinha que a ciência encaixa para construir uma visão mais completa do que aconteceu”, reflete Dantas. Os resultados também podem trazer respostas sobre mudanças climáticas. “Os fósseis são arquivos de condições ambientais”, afirma Lopes. “É como se fossem flashes de momentos da história”, completa Carrasco. “É difícil mensurar impactos em escala de tempo humana, então eles nos dão uma janela temporal maior e, assim, conseguimos contar uma história mais detalhada do passado”, conclui.
Fonte: GizModo