Relações Internacionais

Adversários dos EUA avançam na América Latina, revivendo memórias da Guerra Fria

Por Emmanuele Khouri

A revelação de novas bases de espionagem a cerca de 160 quilômetros dos EUA revive na memória americana um antigo conflito — quando o inimigo se instalou mais perto do que o esperado durante a Guerra Fria. Imagens de satélite analisadas pelo think tank americano CSIS (Center for Strategic and International Studies) mostraram bases de espionagem em Cuba com provável envolvimento do Partido Comunista Chinês, em um relatório publicado no último 2.
Com a expansão de blocos liderados por adversários dos EUA e debate sobre um “novo balanço do poder mundial”, a revelação das bases em Cuba traz paralelos à quando a ilha foi usada pela União Soviética na crise dos mísseis de 1962 — quando o mundo esteve à beira de uma guerra nuclear. Mas o episódio vai além da lembrança de um momento histórico, aprofundando preocupações sobre a presença de rivais estratégicos de Washington perto de suas fronteiras.

“Historicamente, é notável o uso de uma Cuba ideologicamente hostil, após a revolução de 1959, como uma série de ameaças, primeiro da Rússia e, mais recentemente, da China”, disse o Dr. Robert Evan Ellis, professor e pesquisador sobre assuntos da América Latina no U.S. Army War College, do exército dos EUA ao Epoch Times. Os laços crescentes entre a ilha não têm passado despercebidos entre analistas americanos.

“Após a Guerra Fria, Cuba e China desenvolveram uma aliança forte e abrangente. Hoje, sua colaboração é dupla. Em primeiro lugar, Cuba, que depende economicamente, ajuda a China a promover seus inúmeros interesses na América Latina e no Caribe. Em segundo lugar, a aliança atende às necessidades estratégicas da China em duas áreas amplas: inteligência militar e biotecnologia/neurociências”, pontuou um relatório do think tank Global Americans. O panorama revela esforços mais amplos que arriscam a segurança americana na região.

O RISCO À ESPREITA
Imagens de satélite analisadas no relatório do CSIS, mostram a expansão de possíveis bases de espionagem em Cuba com indícios de participação do regime chinês. O relatório pontua a existência de quatro instalações diferentes supostamente capazes de executar operações de vigilância eletrônica, com um conjunto de antenas eficazes para comunicação com satélites e para interceptar sinais. A falta de um programa espacial cubano parece corroborar a suspeita de colaboração chinesa.

“Locais como esses eram um elemento básico de SIGINT [interceptação de sinais] durante a Guerra Fria. Com o fim das hostilidades entre as duas superpotências e o surgimento de novas tecnologias, a Rússia e os Estados Unidos desativaram ou abandonaram a maioria de seus CDAAs [blocos de antena em configuração circular]. A China, no entanto, vem construindo ativamente novas CDAAs importantes, inclusive em seus postos avançados militarizados […] no Mar do Sul da China”, diz o relatório.

Paulo Henrique Araújo, autor e especialista em América Latina, disse ao Epoch Times que “a instalação das bases representa diversos riscos, o primeiro e mais aparente é a questão da espionagem, tanto de questões político-militares, quanto de cidadãos americanos e cubanos na própria ilha e na península da Flórida”.

A interceptação de sinais pode garantir a adversários americanos acesso a informações sensíveis para uso em um futuro conflito. A ilha fica a cerca de 160 quilômetros do estado da Flórida, onde o governo americano tem pelo menos 19 estruturas militares relevantes, incluindo bases, sedes de comandos, centros de lançamento espacial e locais de testes.

UM MERGULHO NA HISTÓRIA
Tensões crescentes entre os EUA e a China têm sido apelidadas de uma “Guerra Fria 2.0” pela lembrança do atrito com a União Soviética e seus aliados no século passado. Uma situação análoga tem sido citada por especialistas, com Pequim e Moscou se aproximando, e países aderindo a organizações lideradas por China e Rússia.

O auxílio econômico e militar da URSS à Cuba por décadas tornou a ilha um centro para militância comunista na América Latina, incluindo treinamento bélico para guerrilheiros e outras atividades pela região. “Cuba cumpria um papel importantíssimo para a revolução: alimentava os sonhos e as esperanças de revolucionários por todo o continente, servia de inspiração e, acima de tudo, de centro de comando para o continente inteiro”, adicionou Paulo.

Em 1962, Cuba e a União Soviética conspiraram para posicionar mísseis nucleares soviéticos na ilha. O governo americano detectou a construção da infraestrutura para os mísseis iniciando uma crise diplomática entre americanos e soviéticos — a Crise dos Mísseis — que aproximou o mundo de um conflito nuclear. Os EUA concordaram em retirar armas nucleares da Itália e da Turquia e não invadir Cuba, e a União Soviética abandonou o posicionamento dos mísseis em Cuba. Agora, décadas mais tarde, Rússia e China se reaproximam da ilha estrategicamente.

“GUERRA FRIA 2.0”
Em maio de 2024, He Weigong, general de alto escalão do Partido Comunista Chinês se encontrou em Pequim com o General Victor Rojo Ramos, membro do Comitê Central do Partido Comunista de Cuba e chefe da Direção Política das Forças Armadas. Durante o encontro foi destacada uma “amizade inquebrantável” entre os dois países e a China se comprometeu em “salvaguardar a soberania” do regime cubano, e apoiar o país “na oposição resoluta à interferência de forças externas em assuntos internos”.

Em um relatório de 2024, a general Laura Richardson, do Comandante do Comando Sul dos EUA, pontuou que “tanto a RPC [República Popular da China] quanto a Rússia estão aproveitando as condições existentes em Cuba para aprofundar a cooperação em todos os elementos do poder nacional”.

O relatório do CSIS afirma que apesar de não haver um comércio oficial de armas entre os dois países, no passado já houve contrabando de armas vindo da China para Cuba. “Em 2015, um navio chinês com destino a Cuba foi detido na Colômbia por contrabandear ‘100 toneladas de pólvora, quase três milhões de detonadores e cerca de 3.000 cartuchos de canhão’. Os registros do navio afirmam que eles estavam transportando ‘grãos’”, afirmou John Suarez, diretor executivo do Center for a Free Cuba (Centro por uma Cuba Livre), uma organização sem fins lucrativos sediada nos EUA, ao Epoch Times Brasil.

No entanto, o que chama atenção é a descrição com que a cooperação entre esses dois países tem acontecido, incluindo no caso das bases de espionagem, com a China não tendo estabelecido nenhuma cooperação estratégica oficial com Cuba. O Dr. Ellis, o ex-oficial do Departamento de Estado, afirmou que o provável sigilo chinês reflete uma “cautela” devido à crise dos mísseis cubanos do século passado. “A China não queria alarmar os Estados Unidos, devido ao histórico de como os Estados Unidos reagiram à abordagem estratégica russa em relação a Cuba”, disse ele.

Por outro lado, especialistas comentam sobre o uso da ilha pelo regime chinês caso seja necessário criar uma distração ao governo americano em possível conflito com Taiwan.

Da esquerda para a direita: Luiz Inácio Lula da Silva, Xi Jinping, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, levantam os braços enquanto posam para uma fotografia de grupo, na Cimeira dos BRICS em Joanesburgo, a 23 de agosto de 2023 (Foto: Alet Pretorius/Pool/AFP/Getty Images)

UM BLOCO TOTALITÁRIO — E A AMÉRICA LATINA
Diante de dois conflitos que afetam aliados americanos do outro lado do Atlântico, a presença de adversários dos EUA na América Latina pode ser um fator sensível para a estabilidade da região. Além das bases de espionagem em Cuba, o regime chinês tem expandido sua influência ao sul.

Uma análise da Reuters, de 2022, que usava dados comerciais da Organização das Nações Unidas (ONU) mostra que, com exceção do México, desde 2021 a China ultrapassou a liderança comercial dos EUA na América Latina. A general americana Richardison disse que o “Partido Comunista Chinês (PCC), busca suplantar os Estados Unidos como a principal potência econômica e militar do mundo”.

Obras de infraestrutura com participação chinesa aprofundam essa análise. Obras sob a iniciativa do Cinturão e Rota — um ambicioso projeto de infraestrutura do Partido Comunista da China — em pontos estratégicos podem representar uma ameaça aos EUA. O antecessor de Richardson no Comando Sul das Forças Armadas americanas, o almirante Craig Faller, disse ao Congresso dos Estados Unidos em 2021 que “a RPC [República Popular da China] também está buscando estabelecer uma logística global e uma infraestrutura de base em nosso hemisfério a fim de projetar e manter o poder militar a distâncias maiores”.

Em maio de 2017, o líder chinês declarou que a região da América Latina era uma “extensão natural” da Rota Marítima da Seda do século XXI — parte do Cinturão e Rota. O Panamá, iimportante região para o comércio marítimo e segurança nacional americana, tornou-se o primeiro país latino-americano a apoiar o Cinturão e Rota em novembro de 2017, cinco meses após mudar seu reconhecimento diplomático de Taiwan para a República Popular da China. Hoje, empresas chinesas têm grande envolvimento em contratos de infraestrutura dentro e ao redor do Canal do Panamá.

Segundo um relatório de 2022 do Center for a Secure Free Society, think tank de segurança nacional sediado nos EUA, empresas estatais chinesas ou controladas pelo PCCh possuem atuação em ao menos onze portos e onze estações de satélite na América Latina, com implicações militares. Desses, pelo menos oito portos estão situados na região do caribe, perto dos EUA. Em 6 de junho, o governo brasileiro assinou um acordo com a China para construção conjunta de um satélite que ficará específico na região do Brasil. Segundo eles será para “fornecendo dados cruciais para a previsão do tempo e o monitoramento de eventos climáticos extremos”.

Outro país da região central que tem se alinhado ao regime chinês é Honduras. No início de 2023 o país trocou seu reconhecimento de Taiwan para China, poucos depois, um memorando de entendimento foi assinado entre os países para cooperações no Cinturão e Rota. Mas as preocupações para o governo americano podem ir além.

Além da China, Rússia e Irã têm avançado sua atuação na América Latina. Os países são parte do bloco BRICS — que inclui também Brasil, Índia e África do Sul e outros. “É importante ressaltar que a China não é um player isolado no cenário internacional, nas últimas semanas a Rússia enviou para Cuba um submarino de propulsão nuclear capaz de disparar mísseis balísticos juntamente de duas fragatas. Em 2023, o Irã navegou por águas do Caribe com navios mercantis adaptados para a guerra e chegaram a cruzar o canal do Panamá”, disse Paulo Henrique.

Além de Cuba, em julho navios russos atracaram na Venezuela — ainda sem data para deixarem o local. Os BRICS, juntamente com a Organização de Cooperação de Xangai (SCO) — outra organização internacional que inclui China, Rússia e Irã e outros adversários estratégicos dos EUA — tem crescido em número de membros e em uma retórica para “mudar o balanço de poder mundial”.

Em maio, o presidente russo Vladimir Putin afirmou em entrevista para a mídia estatal chinesa Xinhua que esses blocos “estão unindo os países do ‘Sul Global’ e pressionando por reformas no sistema de governança global”. Após o pedido oficial da Venezuela para ingressar no BRICS em junho, a vice-presidente do país disse que “o ponto de virada na criação de uma nova ordem mundial chegou e queremos ver a Venezuela tornar-se parte da nova realidade geopolítica”.

Honduras entrou com pedido oficial para ingressar no BRICS em junho de 2023, com Cuba Colômbia também expressando interesse em ingressar. Em junho, em um encontro dos BRICS, o ministro chinês das relações exteriores afirmou estar disposto a trabalhar com o Brasil, o maior país da América Latina, para que o BRICS tenha um papel maior na governança global, principalmente diante das sanções ocidentais.

No encontro, Venezuela e Rússia assinaram um memorando de entendimento, para combater sanções impostas contra seus países por governos ocidentais. Membros do grupo especulam publicamente sobre a criação de uma moeda digital que possibilite controlar o uso do dólar americano.

Os formuladores de políticas precisam reconhecer que a China é um adversário militar com uma ideologia hostil que, juntamente com Irã, Rússia, Venezuela e Cuba, está construindo uma ordem internacional alternativa dominada por autocratas e unida por seu antiamericanismo”, disse Suárez, diretor-executivo do Center for a Free Cuba.

UM MAU PRECEDENTE
“Antes do relatório de 2024 do CSIS, há evidências documentadas de três bases de espionagem chinesas em Cuba que remontam a 1992”, afirmou Suarez. O The Wall Street Journal noticiou em junho de 2023 que a China teria oferecido pagar bilhões de dólares a Cuba para construção de bases de escuta no país e que ambos teriam chegado em um consenso, segundo oficiais americanos familiares com o assunto.

Após a publicação da reportagem John Kirby, Conselheiro de Comunicações de Segurança Nacional, afirmou que a reportagem “não era precisa, mas que o governo Biden estava preocupado com as atividades de influência chinesas ao redor do mundo desde o primeiro dia de sua administração e que eles estavam acompanhando o assunto de perto”.

Poucos dias depois, em uma declaração oficial, a Casa Branca reconheceu que existiam bases chinesas de espionagem em Cuba desde pelo menos 2019. O governo cubano nega as acusações, mas segundo Suarez “as evidências de satélite não mentem, mas o governo cubano e seus colegas russos mentiram repetidamente em 1962, quando colocaram armas nucleares ofensivas em Cuba. Hoje, Havana e Pequim estão mentindo sobre sua cooperação militar contra os Estados Unidos”.

O Partido Comunista Chinês usa também outros artifícios para acessar informações sensíveis dos EUA. Em fevereiro de 2023, o governo americano abateu um suposto balão espião chinês que sobrevoou o país. Em resposta, o ministro chinês das relações exteriores se pronunciou dizendo que a ação americana foi um “uso da força para atacar uma aeronave civil não tripulada” e que a China se reservava o direito de responder com ainda mais intensidade caso necessário.

Departamento de Defesa dos Estado Unidos comentou que a rota do balão passava por muitos locais potencialmente sensíveis, e que isso seria uma contradição à afirmação chinesa de que o balão seria de uso civil. Segundo o departamento, outros balões chineses tinham sido avistados na América Central e do Sul.

“Todos esses balões fazem parte de uma frota de balões da RPC desenvolvida para realizar operações de vigilância, que também violaram a soberania de outros países”, oficiais disseram em um comunicado de imprensa.

De acordo com o diretor do FBI, Christopher Wray, “a maior ameaça de longo prazo às informações e à propriedade intelectual de nosso país, bem como à nossa vitalidade econômica, é a ameaça de contrainteligência e espionagem econômica da China. É uma ameaça à nossa segurança econômica e, por extensão, à nossa segurança nacional”.

Fonte: Epoch Times Brasil

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